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Cirrose hepática - Ramón Bataller Pere Ginès

Última revisão: 19/12/2013

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Ramón Bataller, MD

Liver Unit, Institut de Malalties Digestives i Metabòliques, Hospital Clinic, Barcelona, Catalonia, Spain

 

Pere Ginès, MD

Liver Unit, Institut de Malalties Digestives i Metabòliques, Hospital Clinic, Barcelona, Catalonia, Spain

 

Artigo original: Bataller R, Ginès P. Cirrhosis of the liver. ACP Medicine. 2008;1-12.

[The original English language work has been published by DECKER INTELLECTUAL PROPERTIES INC. Hamilton, Ontario, Canada. Copyright © 2011 Decker Intellectual Properties Inc. All Rights Reserved.]

Tradução: Soraya Imon de Oliveira.

Revisão técnica: Dr. Lucas Santos Zambon

 

Definição

A cirrose é o estágio mais avançado da maioria dos tipos de hepatopatia crônica. É, por definição, uma desorganização difusa da estrutura hepática normal por uma extensiva fibrose associada a nódulos regenerativos. A fibrose hepática é potencialmente reversível, se o agente causativo for eliminado. Todavia, a cirrose em estágio avançado resulta em alterações significativas no leito vascular hepático e costuma ser irreversível.1 A cirrose é uma condição clínica progressiva e severa, que está associada a uma considerável morbidade e a alta mortalidade. Esta condição leva a um amplo espectro de manifestações clínicas características, atribuíveis sobretudo à insuficiência hepática e à hipertensão portal.2 Entre as principais complicações estão a ascite, insuficiência renal, sangramento gastrintestinal (GI), encefalopatia hepática (EH), infecções bacterianas e coagulopatia. Nos últimos anos, foram feitos avanços importantes em termos de compreensão da história natural e patofisiologia da cirrose, bem como no tratamento de suas complicações. A cirrose é também um fator de risco de desenvolvimento de carcinoma hepatocelular (CHC). A cirrose descompensada está associada a um prognóstico ruim, a curto e longo prazos, e o transplante hepático ortotópico (THO) frequentemente é indicado.

 

Epidemiologia

A cirrose é a 9ª causa de morte nos Estados Unidos.3 A doença hepática crônica e a cirrose causam 4 a 5% das mortes de indivíduos na faixa etária de 45 a 54 anos e resultam em cerca de 30.000 óbitos a cada ano, nesse país. A incidência anual da doença hepática crônica recém-diagnosticada, nos Estados Unidos, é de 72,3 casos a cada 100.000 indivíduos. A prevalência da hepatopatia crônica e da cirrose é de 5,5 milhões de casos. Mais de 60% dos casos envolvem indivíduos do sexo masculino. A cirrose é mais comum entre brancos hispânicos e nativos norte-americanos, sendo a 6ª causa de morte nestes grupos. O impacto econômico da cirrose é considerável (U$ 1,5 bilhão em custos diretos e U$ 234 milhões em custos indiretos, no ano de 2000). Em 2000, foram registrados 360.000 contas hospitalares por tratamentos de doença hepática crônica ou cirrose.

 

Etiologia e fatores genéticos

Os principais fatores etiológicos da cirrose hepática podem ser agrupados em 7 categorias [Tabela 1]. Alguns pacientes podem apresentar mais de um destes fatores. As principais causas de cirrose, nos Estados Unidos, são a infecção pelo vírus da hepatite C (HCV) e o consumo excessivo de bebidas alcoólicas, que respondem por 2/3 dos casos. Outras causas significativas são: infecção pelo vírus da hepatite B (HBV), hepatite autoimune, colestase crônica (cirrose biliar primária [CBP] e colangite esclerosante primária [CEP]) e doenças metabólicas genéticas (hemocromatose e doença de Wilson). Como resultado da atual epidemia de obesidade, a doença do fígado esteatótico não alcoólico (DFENA) e a esteato-hepatite não alcoólica (EHNA) estão sendo cada vez mais reconhecidas como algumas das principais causas de cirrose. Muitos pacientes diagnosticados com a conhecida cirrose criptogênica têm apresentado características da síndrome metabólica, sugerindo a existência de um papel para a DFENA e a EHNA na patogênese deste tipo de cirrose. Para identificar a etiologia da cirrose hepática, é preciso obter dados a partir da história médica, achados do exame físico, exames laboratoriais e biópsia hepática, quando houver indicação [Tabela 2]. A identificação da causa da cirrose é importante em termos de manejo terapêutico (p. ex., terapia antiviral em casos de infecção por HBV ou HCV; flebotomia em casos de hemocromatose).

 

Tabela 1. Principais causas de cirrose hepática

Doenças virais

            Hepatite B (com ou sem hepatite D)

            Hepatite C

Doenças autoimunes

            Hepatite autoimune

            CBP

            CEP

            Doença do enxerto vs. hospedeiro

Agentes hepatotóxicos

            Consumo abusivo de bebidas alcoólicas

            Fármacos: metotrexato, alfametildopa, amiodarona, outros

            Intoxicação por vitamina A

Doenças metabólicas adquiridas

            Esteatose hepática não alcoólica e esteato-hepatite

Doenças vasculares

            Insuficiência cardíaca à direita crônica

            Síndrome de Budd-Chiari (trombose em veia hepática)

            Doença venoclusiva

            Trombose na veia cava inferior

Doenças genéticas

            Doença de Wilson

            Hemocromatose

            Doença do armazenamento de glicogênio de tipo IV

            Tirosinemia

            Deficiência de alfa-1-antitripsina

Diversas

            Cirrose biliar secundária

            Cirrose criptogênica

CBP = cirrose biliar primária; CEP = colangite esclerosante primária.

 

Tabela 2. Identificação das principais causas de cirrose hepática

Causa

Método diagnóstico

Associada ao consumo de álcool

História médica (obtida também junto aos familiares); níveis de álcool na urina; achados histológicos

HCV

Anti-HCV; RNA de HCV

HBV

HBsAg; DNA de HBV

Vírus da hepatite D

Anti-delta IgG ou IgM

Hepatite autoimune

Anticorpos antiteciduais (FAN, AMA, anti-LKM, ASMA); hipergamaglobulinemia; achados histológicos

CBP

AMA; achados histológicos

CEP

Colestase severa; detecção de anormalidades no trato biliar (CPRM, CPRE); ANCA; presença de enteropatia inflamatória; achados histológicos

Doença de Wilson

Níveis séricos de ceruloplasmina; anel de Kayser-Fleischer; conteúdo de cobre no fígado; exames genéticos

Hemocromatose

Níveis séricos de ferritina; saturação da transferrina sérica; exames genéticos para mutação HFE; conteúdo de ferro no fígado

EHNA

Síndrome metabólica (obesidade, resistência à insulina, diabetes melito, dislipidemia), achados histológicos (podem estar ausentes na cirrose); ausência de consumo abusivo de álcool

FAN=Fator anti-núcleo; AMA = anticorpo antimitocôndria; ANCA = anticorpo anticitoplasma de neutrófilo; ASMA = anticorpo antimúsculo liso; CBP = cirrose biliar primária; CEP = colangite esclerosante primária; CPRE = colangiopancreatografia retrógrada endoscópica; EHNA = esteato-hepatite não alcoólica; HBsAg = antígeno de superfície do vírus da hepatite B; HBV = vírus da hepatite B; HCV = vírus da hepatite C; LKM = microssomos de fígado-rim; CPRM = colangiopancreatografia por ressonância magnética.

 

A cirrose é uma doença complexa em que muitos genes interagem com fatores ambientais.4 Os fatores não genéticos que influenciam a progressão para cirrose incluem idade, consumo de álcool, terapia imunossupressora e infecção por HIV. Os fatores genéticos envolvidos na patogênese da cirrose são pouco conhecidos. Estes fatores podem explicar o amplo espectro de respostas a um mesmo agente etiológico encontrado em pacientes com hepatopatia crônica. Os polimorfismos envolvendo genes codificadores de proteínas imunorregulatórias, citocinas pró-inflamatórias e mediadores fibrogenéticos podem influenciar o desfecho de condições que podem causar lesão hepática crônica (alcoolismo, infecção por HCV crônica, distúrbios autoimunes), bem como modular a progressão da hepatite crônica para cirrose.

 

Patogênese

Fase inicial: fibrogênese hepática

A cirrose é o estágio final de numerosas formas de doença hepática crônica caracterizada por fibrose progressiva. A fibrose hepática resulta da resposta hepática de cicatrização de ferida a lesões repetitivas.5 A fibrose consiste no acúmulo de proteínas da matriz extracelular (MEC), principalmente colágeno fibrilar, em consequência tanto da síntese de MEC aumentada como da diminuição da degradação de MEC. Os miofibroblastos, na maioria derivados das células estreladas do fígado, são as principais células produtoras de MEC no fígado lesado. Seguindo a lesão crônica, as células estreladas são ativadas em células fibrogênicas (células de músculo liso positivas para alfa-actina) [Figura 1]. Entre os principais mediadores deste processo, estão as citocinas inflamatórias, fator de transformador do crescimento beta-1 (TGF-beta-1) e angiotensina II.

 

 

Figura 1. Biópsia de fígado na infecção crônica pelo vírus da hepatite C (HCV). Análise imuno-histoquímica do acúmulo de miofibroblastos fibrogênicos (músculo liso [células positivas para alfa-actina]) em uma amostra de biópsia hepática obtida de um homem de 56 anos de idade com cirrose hepática decorrente de infecção pelo HCV. Os miofibroblastos acumulam-se principalmente nos septos fibrosos. Algumas células estreladas hepáticas ativadas podem ser observadas em torno dos sinusoides hepáticos (seta). (a) Aumento original x 40. (b) Aumento original x 600.

 

A patogênese da fibrose hepática varia de acordo com a causa subjacente. Na doença hepática induzida por álcool, há aumento da concentração sanguínea de lipopolissacarídeo derivado das bactérias intestinais na circulação porta, com consequente ativação das células de Kupfer. Estas, por sua vez, liberam espécies reativas do oxigênio e citocinas, ativando as células estreladas e promovendo apoptose de hepatócitos. A patogênese da fibrose hepática induzida pelo HCV é pouco compreendida. O HCV infecta os hepatócitos, causando estresse oxidativo e induzindo o recrutamento de células inflamatórias. Estes 2 fatores ativam as células estreladas. Nos distúrbios colestáticos crônicos, como a CBP, linfócitos T e citocinas mediam o dano persistente ao ducto colédoco. As células epiteliais biliares secretam mediadores fibrogênicos, ativando os mieloblastos porta adjacentes que, então, secretam MEC. Eventualmente, as células estreladas perissinusoidais tornam-se ativadas e há desenvolvimento de estrias fibróticas. A patogênese da fibrose hepática atribuída à EHNA é também pouco conhecida. O acúmulo de ácidos graxos livres junto aos hepatócitos leva ao estresse oxidativo e resistência à insulina, que, por sua vez, acarreta elevação dos níveis séricos de ácidos graxos livres. A secreção intra-hepática de citocinas pró-inflamatórias promove apoptose de hepatócitos e recrutamento de células inflamatórias, com consequente fibrose progressiva.

 

Cirrose

A fibrose coalescente está associada a anomalias profundas na microcirculação hepática.6 Ocorre capilarização dos sinusoides hepáticos, e novos vasos são formados junto à bainha fibrosa. Há predominância local de moléculas vasoconstritoras em relação às vasodilatadoras, resultando na contração tônica das células estreladas perissinusoidais e em consequente aumento da resistência vascular. Além disso, há trombose em vasos de pequeno calibre e desenvolvimento de desvios arteriais intra-hepáticos. Os hepatócitos proliferam desorganizadamente em áreas isquêmicas, formando nódulos regenerativos. A pressão no sistema venoso porta aumenta progressivamente, levando ao desenvolvimento de veias portocolaterais e varizes gástricas e esofágicas.7 A hipertensão porta é causada pelo aumento do fluxo de entrada venoso porta e pela resistência vascular hepática aumentada. Este último componente é atribuível à disfunção endotelial e ao comprometimento da síntese intra-hepática de vasodilatadores, como o óxido nítrico.8 Este componente dinâmico é responsável por cerca de 30% da resistência intra-hepática observada na cirrose, além de ser um alvo importante para terapia futura. Em contraste com o que ocorre no fígado, a resistência vascular sistêmica em pacientes com cirrose diminui e isto eventualmente promove uma ativação marcante dos sistemas vasoconstritor e retentor de sal, com consequente piora da hipertensão porta e favorecimento da formação de ascite. A função hepatocelular vai sendo progressivamente comprometida, e há diminuição da função do sistema retículo endotelial, levando à endotoxinemia e ao risco aumentado de infecções bacterianas. Eventualmente, a função hepatocelular falha e conduz a uma hepatopatia severa e EH. Com frequência, observa-se profunda disfunção circulatória decorrente do comprometimento da função miocárdica e da resistência vascular sistêmica diminuída. Nos estágios tardios da cirrose, há desenvolvimento de vasoconstrição renal que leva à síndrome hepatorrenal (SHR). Nesta fase da doença, a maioria dos pacientes morre, a menos que um THO seja realizado rapidamente.

 

Diagnóstico

Manifestações clínicas

A cirrose pode ser clinicamente silenciosa e descoberta de modo incidental, por meio de exames de imagem solicitados por outros motivos, na laparotomia ou na autópsia. Em muitos casos, os sintomas são insidiosos no início e incluem enfraquecimento generalizado, anorexia, mal-estar e perda de peso.9 A massa de musculatura esquelética frequentemente diminui. A cirrose “compensada” é definida pela ausência de sintomas ou presença de sintomas mínimos. Eventualmente, o paciente apresenta manifestações clínicas de disfunção hepatocelular e hipertensão portal, incluindo sangramento de varizes gastresofágicas, ascite e sintomas neuropsiquiátricos, além de icterícia progressiva. O aparecimento súbito destas complicações pode ser a 1ª manifestação sintomática da cirrose. A coagulopatia é tipicamente encontrada em pacientes com cirrose em estágio avançado. A obstrução progressiva do fluxo biliar em pacientes com CBP e CEP leva à hiperpigmentação da pele, icterícia, prurido e xantelasmas. Nestes pacientes, a desnutrição secundária à anorexia, má absorção de gorduras e aumento do catabolismo são comuns. A deficiência de vitaminas lipossolúveis também é observada com frequência na cirrose. Na doença hepática associada ao consumo de álcool, os sintomas extra-hepáticos relacionados ao sistema nervoso, coração e pâncreas também podem estar presentes.

 

Achados físicos

Os pacientes cirróticos mostram achados físicos típicos, ainda que o exame físico possa resultar normal em indivíduos com cirrose em fase inicial. O tamanho do fígado está aumentado e o órgão é palpável durante as fases iniciais da doença. Na cirrose em estágio avançado, o tamanho do fígado geralmente diminui. A esplenomegalia é um achado comum. Pode haver ascite e/ou edema periférico, sendo possível observar uma circulação venosa colateral no abdome. Os pacientes com EH apresentam alteração da condição mental, diminuição da consciência e asterix (flapping) Outros sinais típicos da cirrose incluem o desgaste muscular, eritema palmar, aranhas vasculares (teleangectasias ou “spiders”), ginecomastia, perda de pelos axilares, atrofia testicular e hálito hepático. Em pacientes alcoólicos, é possível notar contraturas de Dupuytren, ampliação da parótida e neuropatia periférica. A hiperpigmentação cutânea é tipicamente observada em pacientes com distúrbios colestáticos (isto é, CBP) e/ou hemocromatose. Os pacientes com cirrose em estágio avançado comumente apresentam desnutrição severa, ascite proeminente e sintomas neuropsiquiátricos [Figura 2].

 

 

Figura 2. Ascite na cirrose avançada. Foto de uma paciente de 45 anos de idade com ascite tensa decorrente de cirrose em estágio avançado, atribuída à hepatopatia induzida por álcool. A paciente foi submetida a uma paracentese de grande volume e, em seguida, recebeu albumina (8 g/L).

 

Exames de sangue

Os exames hepáticos comumente resultam anormais. Os níveis séricos de aspartato aminotransferase (AST) costumam estar elevados, porém valores acima de 300 U/L são incomuns. Os níveis séricos de alanina aminotransferase (ALT) podem estar relativamente baixos (AST/ALT > 2). O tempo de protrombina sérica (ou a relação normalizada internacional [INR]) com frequência está aumentado, refletindo a síntese reduzida de fatores de coagulação, mais notavelmente os fatores dependentes de vitamina K. Os níveis séricos de albumina estão diminuídos, sobretudo em consequência da síntese hepatocelular precária. A concentração sérica de gamaglobulina total aumenta em indivíduos com cirrose em estágio avançado, devido ao comprometimento da função reticuloendotelial e dos níveis sanguíneos aumentados de produtos bacterianos. A fosfatase alcalina (FA) em geral está apenas moderadamente aumentada, exceto em pacientes com doença biliar (isto é, CBP, CEP), que apresentam níveis acentuadamente aumentados de FA e gamaglutamiltranspeptidase (GGT), às vezes associados a níveis de bilirrubina elevados. A anemia é bastante comum e costuma ser normocítica, mas pode ser microcítica, hipocrômica por sangramento GI crônico, microcítica por deficiência de folato (no alcoolismo), ou hemolítica. O hiperesplenismo pode levar a leucopenia e trombocitopenia. Os níveis séricos de colesterol e triglicerídeos podem estar aumentados em pacientes com obstrução biliar, mas na verdade estão baixos em pacientes com cirrose avançada de origem não biliar. Os pacientes cirróticos podem desenvolver intolerância à glicose e diabetes melito, atribuíveis principalmente à resistência à insulina. A hiperventilação central pode levar à alcalose respiratória crônica com baixa concentração sérica de bicarbonato. A deficiência alimentar e as perdas urinárias aumentadas causam hipomagnesemia e hipofosfatemia. A insuficiência renal, estimada pelos elevados níveis séricos de creatinina e pelas concentrações sanguíneas de ureia, e a hiponatremia podem ser observadas em pacientes com cirrose, especialmente naqueles com ascite.

 

Exames de imagem

A ultrassonografia (US) em tempo real, combinada à US com Doppler de fluxo colorido, é a ferramenta de maior utilidade para a avaliação de pacientes com cirrose.10 A US é útil para demonstrar as características morfológicas da cirrose, incluindo os contornos hepáticos nodulares ou irregulares; uma estrutura alterada; e a presença de sinais de hipertensão porta, como as veias portocolaterais [Figura 3]. A US também é útil para detectar esteatose hepática, ascite, esplenomegalia e trombose da veia porta. Em pacientes com colestase, esta técnica ajuda a excluir as causas extra-hepáticas de colestase. A US com Doppler fornece informação útil sobre a hemodinâmica porta e pode detectar um fluxo sanguíneo porta invertido. O exame de US é particularmente útil na detecção de tumores hepáticos, como CHC. A demonstração da vascularização tumoral por US com Doppler e/ou injeção de contraste de US é valiosa para diferenciar entre nódulos regenerativos e CHC. Os exames dinâmicos que empregam tomografia computadorizada (TC) e ressonância magnética (RM) também são úteis para a avaliação da cirrose e o diagnóstico de tumores hepáticos previamente detectados por US. O uso da TC ou da RM para avaliação de CHC em pacientes com cirrose é limitado pelo alto custo. A elastografia é uma técnica nova, que avalia o grau de rigidez hepática com base na velocidade de uma onda elástica conduzida por um transmissor posicionado intercostalmente. Esta técnica ajuda a diferenciar a cirrose de uma fibrose mais leve, e também pode predizer o grau de hipertensão porta. O exame é limitado pela obesidade mórbida, ascite e espaços intercostais estreitos.11

 

 

Figura 3. Ultrassonografia (US): cirrose decorrente de hepatite C crônica. Imagens de US em tempo real obtidas de um homem de 56 anos de idade com cirrose hepática causada por infecção crônica pelo vírus da hepatite C (HCV). O paciente tinha cirrose compensada e estava sendo submetido a exames de US hepática aliados à determinação dos níveis séricos de alfafetoproteína a cada 6 meses, para avaliação de um carcinoma hepatocelular (CHC). (a) O fígado apresentou contornos irregulares (seta) e estrutura alterada. (b) Uma trombose foi detectada na veia porta (seta).

 

Biópsia hepática

A biópsia hepática pode estabelecer de maneira inequívoca a presença de cirrose.12 É útil para determinar sua causa e fornecer informações sobre a extensão do dano hepático. A biópsia hepática geralmente é realizada por meio de uma abordagem percutânea que, por sua vez, não deve ser usada em casos de pacientes com coagulopatia severa (INR > 1,5 e/ou contagem de plaquetas < 50.000/mcL3) e deve ser usada com cautela em casos de pacientes com obesidade severa. Entre as limitações da biópsia hepática, estão a invasividade da técnica e o potencial de erro de amostragem, especialmente em casos de pacientes com cirrose macronodular. A biópsia hepática transjugular é indicada para pacientes com coagulopatia severa ou ascite e permite medir a pressão porta.13 No entanto, a quantidade de tecido obtida é pequena e, em alguns casos, não é possível estabelecer o diagnóstico de cirrose. O exame de biópsia hepática, em casos selecionados, pode ser realizado durante a laparoscopia. Este procedimento em geral é reservado para o estadiamento do câncer ou para os casos de ascite de origem desconhecida. Os achados histológicos que definem a cirrose incluem a fibrose extensiva e os nódulos regenerativos. O grau de infiltração de células inflamatórias depende da atividade da doença subjacente. A cirrose micronodular é caracterizada pela presença de nódulos uniformemente normais (diâmetro < 3 mm), enquanto os nódulos encontrados na cirrose macronodular apresentam tamanhos variados (3 mm a 2 cm de diâmetro) e uma estrutura lobular normal (tratos porta, vênulas hepáticas terminais). Em alguns casos, os achados histológicos ajudam a identificar o agente causativo da cirrose: infiltração linfocitária periporta na cirrose induzida por HIV; corpúsculos de Mallory, infiltração neutrofílica e esteatose na cirrose induzida por álcool e/ou EHNA; envolvimento biliar na CBP; ou deposição maciça de ferro na hemocromatose. Contudo, na cirrose em estágio avançado, os achados histológicos podem ser similares independentemente da doença subjacente.

 

Manejo geral

Os pacientes cirróticos devem ser examinados periodicamente. Os pacientes cirróticos compensados devem ser examinados 2 a 3 vezes/ano. Ao diagnóstico, é necessário obter uma extensiva história médica e solicitar exames laboratoriais, incluindo as sorologias virais, a fim de identificar o agente causal. Deve ser realizado um exame endoscópico, para avaliar a presença e o tamanho das varizes esofágicas. A US abdominal deve ser realizada no momento do diagnóstico e, subsequentemente, a cada 6 meses, para detectar um CHC antecipadamente. Os critérios para THO devem ser avaliados periodicamente, e as principais complicações clínicas (isto é, infecções bacterianas, comprometimento renal, sangramento GI) devem ser ativamente prevenidas.14 Muitos pacientes queixam-se de anorexia, e é necessário ter cautela para garantir que estes indivíduos recebam uma ingesta proteico-calórica adequada. Os pacientes frequentemente são beneficiados pela adição de suplementos nutricionais. A deficiência de zinco, comumente encontrada, exige tratamento. A administração de sulfato de zinco (50 a 200 mg/dia) pode ser efetiva no tratamento das câimbras musculares. O prurido é uma queixa comum de pacientes cirróticos, sobretudo daqueles com colestase crônica (CBP e CEP). Os fármacos que podem aliviar o prurido são a colestiramina, ácido ursodesoxicólico, naltrexona, rifampicina e ondansetron. Alguns homens com cirrose sofrem de hipogonadismo. Homens com sintomas severos de hipogonadismo podem ser submetidos à terapia com preparações tópicas de testosterona, cuja segurança e eficácia, todavia, foram pouco investigadas. Os pacientes com cirrose podem desenvolver osteoporose. A suplementação com cálcio e vitamina D é importante para os pacientes que apresentam alto risco de desenvolvimento de osteoporose, especialmente em casos de colestase crônica e de pacientes sob tratamento com corticosteroides para hepatite autoimune. A detecção de uma osteopenia reduzida por exames de densitometria óssea também pode exigir a instituição de uma terapia à base de aminobisfosfonato (p. ex., alendronato de sódio). A prática de exercícios leves, incluindo caminhada e até natação, deve ser incentivada em casos de pacientes com cirrose compensada. Os pacientes debilitados frequentemente são beneficiados pelos programas de exercícios formais com supervisão de um fisioterapeuta. Os pacientes com cirrose devem receber vacinação para obterem proteção contra a hepatite A. Outras medidas protetoras são a vacinação contra infecções pelo HBV, pneumococos e vírus influenza. As medicações potencialmente hepatotóxicas devem ser evitadas. Pacientes com ascite não devem receber fármacos anti-inflamatórios não hormonais (AINH) nem antibióticos nefrotóxicos (p. ex., aminoglicosídeos), que podem induzir sangramento GI e/ou insuficiência renal. A cirurgia e a anestesia geral impõem riscos aumentados em pacientes cirróticos, particularmente naqueles com hipertensão porta, podendo levar à descompensação hepática.

 

Ações específicas

Cirrose compensada

Terapias médicas específicas podem ser instituídas para diferentes hepatopatias, com o intuito de diminuir a progressão da doença. Entretanto, estas terapias perdem progressivamente a eficácia à medida que a doença hepática evolui para cirrose. Em pacientes com cirrose compensada, as terapias específicas evitam o desenvolvimento de complicações clínicas e, desta forma, adiam a necessidade de transplante de fígado. O tratamento com interferon peguilado + ribavarina deve ser considerado para pacientes com cirrose compensada resultante de infecção por HCV, ainda que a taxa de resposta viral sustentada seja menor do que aquela observada em pacientes não cirróticos.15 A erradicação viral elimina quase totalmente o risco de descompensação hepática.16 O tratamento de manutenção com interferon para pacientes irresponsivos ao tratamento com interferon + ribavarina está sendo investigado. Pacientes seletos com cirrose descompensada decorrente de infecção por HCV que estejam aguardando um THO também podem ser tratados com interferon peguilado + ribavarina.17 Nestes casos, o tratamento pode ser iniciado com uma antecedência de vários meses em relação à data do THO, a fim de prevenir a reinfecção do enxerto.

Em casos de pacientes com cirrose associada à infecção pelo HBV, a lamivudina parace ser um agente antiviral seguro e efetivo, capaz de melhorar ou estabilizar a doença hepática em pacientes seletos com cirrose em estágio avançado e replicação ativa de HBV.18 Entretanto, o tratamento prolongado pode levar ao desenvolvimento de resistência viral à lamivudina. O adefovir, a telbivudina e o entecavir são outros agentes antivirais que apresentam alta atividade contra ambas as formas – selvagem e lamivudina-resistente – do HBV.

A medida mais efetiva para pacientes com cirrose induzida por álcool é parar de beber.19 A abstinência pode estabilizar e até melhorar a função hepática. O suporte psicológico é altamente recomendado para que o paciente consiga se abster do álcool por tempo prolongado. A colchicina pode melhorar o resultado, ainda que seu uso seja dificultado pelos efeitos colaterais indesejáveis.20 No casos de hepatite alcoólica sobreposta, o tratamento com glicocorticoides (40 mg/dia de prednisolona (ou metil-predinisolona) durante 4 semanas, seguido de desmame da terapia por 1 a 2 semanas) ou pentoxifilina (400 mg 8/8 horas) melhora a sobrevida a curto prazo.21

Em pacientes com CBP, o ácido ursodesoxicólico (13 a 15 mg/kg/dia) alivia o prurido, melhora os resultados dos exames de bioquímica do sangue e prolonga a sobrevida.22 Embora o ursodiol possa diminuir a necessidade de THO, sua utilidade na CBP para pacientes cirróticos é limitada. Outros tratamentos (glicocorticoides, colchicina e azatioprina) não são indicados, porque estão associados a efeitos colaterais sérios. Nenhuma terapia específica melhora o resultado dos pacientes com CBP, ainda que o ácido ursodesoxicólico promova efeitos benéficos sobre os parâmetros bioquímicos. Em pacientes com cirrose atribuída à hepatite autoimune, a terapia imunossupressora deve ser usada com cautela, pois pode favorecer o desenvolvimento de infecções. Do mesmo modo, a lesão necroinflamatória observada neste estágio da doença costuma ser discreta. Por fim, os pacientes com cirrose atribuída a doenças metabólicas genéticas, como a hemocromatose e a doença de Wilson, são beneficiados por flebotomias e quelantes de cobre (isto é, D-penicilinamina, trientina ou zinco), respectivamente.

 

Cirrose descompensada

Ascite

A ascite é a complicação mais frequente da cirrose.23 É uma condição que compromete a qualidade de vida e aumenta o risco de infecção bacteriana. É causada principalmente por uma vasodilatação esplâncnica atribuível à síntese aumentada de vasodilatadores (isto é, óxido nítrico). A vasodilatação esplâncnica severa diminui o volume sanguíneo arterial efetivo, com consequente ativação de fatores sistêmicos vasoconstritores e retentores de sódio. Na cirrose em estágio avançado, a excreção de água livre de solutos também é comprometida e há desenvolvimento de vasoconstrição renal, levando à hiponatremia por diluição e SHR, respectivamente.

A ascite pode ser graduada em 3 grupos: grupo 1, com ascite detectada somente por US; grau 2, com ascite moderada e distensão patente do abdome; e grau 3, com ascite tensa e distensão abdominal marcante [Figura 2]. A 1ª etapa da avaliação de pacientes com ascite recém-formada consiste em excluir as causas não hepáticas de ascite (p. ex., tuberculose peritoneal ou malignidades). Além dos exames sorológicos, o exame de US é útil para confirmar sinais de cirrose, excluir a hipótese de CHC e detectar trombose na veia porta. O líquido ascítico deve ser examinado em pacientes com ascite recém-formada, suspeita de peritonite bacteriana espontânea (PBE), EH ou sangramento GI. Deve ser realizada uma contagem de células, determinação da concentração de albumina e proteína total do líquido ascítico, além da cultura do líquido em frascos de hemocultura. A função renal e os parâmetros hemodinâmicos também devem ser avaliados em todos os pacientes. O tratamento inicial da ascite inclui a diminuição da ingesta de sódio para 60 a 90 mEq/dia, que equivale a 1,5 a 2 g/dia de sal. Deve ser prescrita uma restrição de sal aliada a uma ingesta adequada de calorias e proteínas, para manter a condição nutricional. A ingesta de líquidos deve ser restrita a menos de 1.000 mL para todos os pacientes com hiponatremia por diluição significativa (concentração sérica de sódio < 130 mmol/L na presença de ascite e/ou edema). Os pacientes com ascite de volume moderado podem alcançar um equilíbrio de sódio negativo e perder líquido ascítico mediante tratamento com espironolactona (50 a 200 mg/dia) ou amilorida (5 a 10 mg/dia). Doses baixas de furosemida (20 a 40 mg/dia) também podem ser adicionadas. A eficácia de outros antagonistas de mineralocorticoides, como o canrenoato e a eplerenona, não foi extensivamente estudada. Os pacientes devem ser acompanhados de perto, a fim de evitar a diurese excessiva. A perda de peso recomendada para prevenção da insuficiência renal é de 0,3 a 0,5 kg/dia para pacientes sem edema periférico, e de 0,8 a 1 kg/dia para aqueles com edema periférico. Pacientes com ascites volumosas devem ser tratados inicialmente com paracentese para grandes volumes. Os expansores de plasma devem ser administrados para evitar insuficiência renal e disfunção circulatória induzida por paracentese.24 A albumina é o expansor plasmático de escolha, para os casos em que mais de 5 L de líquido ascítico são removidos. Podem ser fornecidas 8 g de albumina endovenosa para cada 1 L de líquido ascítico removido. A espironolactona (100 a 400 mg/dia), com ou sem furosemida (40 a 160 mg/dia), deve ser administrada para prevenir a recorrência de ascite após a paracentese de grande volume. As doses de diurético então devem ser ajustadas individualmente, conforme as respostas diuréticas. Entre 5 e 10% dos pacientes apresentam ascite refratária, que é definida pela ausência de resposta a doses altas de diurético ou ocorrência de efeitos adversos (p. ex., insuficiência renal, EH, hiponatremia, hipercalemia) que impedem seu uso. As estratégias terapêuticas atualmente adotadas para pacientes com ascite refratária incluem a paracentese para grandes volumes com infusão de albumina e uma derivação portossistêmica intra-hepática transjugular (TIPS) [Figura 4]. A TIPS é efetiva para prevenção da recorrência de ascite, mas não melhora a sobrevida, está associada a uma alta taxa de estenose da derivação, favorece a EH e é menos custo-efetiva do que a repetição da paracentese.25 A TIPS provavelmente é indicada para pacientes sem insuficiência hepática severa nem EH, indivíduos com líquido loculado impossível de tratar via paracentese, e pacientes intolerantes a repetidas paracenteses. Pacientes com ascite devem ser avaliados para THO, uma vez que a taxa de sobrevida de 5 anos é de 30 a 40%. Os pacientes com ascite refratária, PBE ou SHR apresentam prognóstico precário, sendo necessário considerar a priorização do THO. A hiponatremia por diluição está presente em 30 a 35% dos pacientes internados com cirrose e ascite.26 É uma condição secundária ao comprometimento da excreção renal de água livre de solutos, atribuível à secreção não osmótica do hormônio antidiurético. Embora a hiponatremia comumente seja assintomática, pode favorecer o desenvolvimento da EH. O tratamento consiste na restrição de líquidos (1.000 mL/dia) e na descontinuação dos diuréticos. Em muitos casos, contudo, estas ações não corrigem a hiponatremia. Dados preliminares obtidos com o uso de vaptanas – fármacos aquaréticos promotores de excreção de água livre de solutos via antagonismo dos receptores V2 da vasopressina junto ao néfron – sugerem que esta classe de fármacos pode melhorar tanto a ascite como a hiponatremia por diluição, embora seu efeito sobre a sobrevida ainda não tenha sido comprovado.

 

 

Figura 4. Derivação portossistêmica intra-hepática transjugular (TIPS). A TIPS é indicada para pacientes com sangramento varicoso e ascite refratária. Consiste em um stent autoexpansível (a) que é inserido via abordagem transjugular e cria um desvio entre um ramo da veia porta e a veia cava inferior (b). A imagem foi obtida de uma mulher de 62 anos de idade com cirrose hepática decorrente de infecção crônica pelo vírus da hepatite C (HCV). A TIPS é visível (seta). A paciente sofria de ascite refratária e aguardava na lista de espera por um transplante de fígado.

 

Síndrome hepatorrenal (SHR)

A SHR é a complicação mais severa da cirrose.27 Trata-se de uma insuficiência renal funcional causada por uma extrema vasoconstrição renal. Os critérios diagnósticos da SHR estão bem estabelecidos [Tabela 3]. Existem 2 tipos clínicos de SHR. O tipo 1 é caracterizado por uma oligúria progressiva e elevação rápida da concentração sérica de creatinina, que atinge níveis superiores a 2,5 mg/dL. A sobrevida destes pacientes é extremamente precária. O tipo 2 é definido por um aumento moderado e estável da concentração sérica de creatinina e frequentemente está associado a uma ascite refratária. A SHR pode ocorrer de maneira espontânea ou em seguida a condições precipitantes, como a PBE, hepatite alcoólica aguda ou paracentese de grande volume sem expansão do plasma. A abordagem inicial para avaliação da súbita piora da função renal em um paciente com cirrose inclui: (a) exclusão de causas iatrogênicas ou outras causas de insuficiência renal; (b) avaliação extensiva e tratamento para sepse; e (c) exclusão da depleção de volume por meio de avaliação clínica e prova terapêutica com albumina por 48h (dose diária de 1 g/kg ou até 100 g) administrada por via endovenosa. A SHR de tipo 1 soma pontos ao escore Model for End-Stage Liver Disease (MELD), que é utilizada na previsão da mortalidade para pacientes com cirrose submetidos ao tratamento médico. O transplante de fígado é o único tratamento definitivo para SHR, cujos resultados dependem do tratamento bem-sucedido da síndrome antes do transplante. Para os pacientes com SHR de tipo 1, a combinação de um vasoconstritor (terlipressina, midrodina ou noradrenalina) a uma infusão de albumina endovenosa resulta em melhora da função renal em cerca de 40% dos pacientes.28 A TIPS é outra abordagem efetiva para pacientes com SHR, ainda que seu uso não seja recomendado para pacientes com disfunção hepática severa. Estes tratamentos podem servir de ponte para um THO. O transplante de fígado é o tratamento de escolha, embora sua aplicabilidade seja limitada pela sobrevida precária destes pacientes. Em indivíduos cirróticos com sepse grave, a insuficiência adrenal é uma ocorrência comum. Neste contexto, a administração de hidrocortisona (50 mg EV 6/6 horas) pode melhorar as anomalias hemodinâmicas da sepse e também a sobrevida.29

 

Tabela 3. Critérios diagnósticos para a SHR segundo o International Ascites Club

Principais critérios

1. Taxa de filtração glomerular baixa, indicada por níveis séricos de creatinina > 1,5 mg/dL ou depuração de creatinina de 24 h < 40 mL/min

2. Ausência de choque, infecção bacteriana em curso, perdas de líquido e tratamento vigente com fármacos nefrotóxicos

3. Ausência de melhora sustentada da função renal (diminuição dos níveis séricos de creatinina para 1,5 mg/dL ou menos; ou aumento da depuração de creatinina para 40 mL/min ou mais) após a retirada do diurético e expansão do volume plasmático com 1,5 L de expansor de plasma

4. Proteinúria < 500 mg/dia e ausência de evidências de US de uropatia obstrutiva ou doença parenquimatosa renal

Critérios adicionais

1.Volume de urina < 500 mL/dia

2. Concentração de sódio na urina < 10 mEq/L

3. Osmolalidade urinária > osmolalidade plasmática

4. Concentração de hemácias na urina < 50/campo de maior aumento

5. Concentração sérica de sódio < 130 mEq/L

SHR = síndrome hepatorrenal; US = ultrassonografia.

 

Peritonite bacteriana espontânea (PBE)

A PBE é uma infecção severa encontrada em 15 a 25% dos pacientes cirróticos internados com ascite.30 Entre os fatores predisponentes, estão a insuficiência hepática severa e o baixo conteúdo proteico no líquido ascítico (1,5 g/dL). A PBE parece estar relacionada à translocação de bactérias do trato GI para os linfonodos mesentéricos. As manifestações clínicas são variáveis, podendo ir da ausência de sintomas a um quadro severo de peritonite e sepse. A suspeita de PBE também deve ser considerada em casos de pacientes cirróticos que apresentam piora da função renal e/ou hepática sem nenhuma causa evidente. Os organismos causais mais comuns são a Escherichia coli, espécies de Klebsiella e outros organismos entéricos gram-negativos. A PBE é diagnosticada pela presença de mais de 250 neutrófilos/mcL de líquido ascítico ou diante de um resultado positivo na análise do líquido ascítico com fitas de teste de urina para detecção de esterase leucocitária (3+ ou 4+). Menos de 50% dos casos de PBE apresentam cultura de líquido ascítico positiva. Inicialmente, a PBE deve ser tratada de maneira empírica. O regime mais comumente usado é um curso de 5 a 7 dias de cefalosporina de 3ª geração (p. ex., 2 g de cefotaxime a cada 8 a 12 h; 1 a 2 g de ceftriaxone 1x/dia). Na PBE, é comum haver desenvolvimento de SHR que, por sua vez, é o fator preditor de mortalidade mais significativo. A administração de albumina a uma dose de 1,5 g/kg no momento em que a PBE é diagnosticada (1o dia de tratamento) e, subsequentemente, no 3o dia de tratamento uma dose de 1 g/kg diminui o risco de SHR e faz a mortalidade cair de 30% para 10%.31 A resposta à terapia para PBE pode ser monitorada pela presença de sinais de infecção e pela contagem de neutrófilos no líquido ascítico. Após a resolução da PBE, os pacientes têm 70% de chances de sofrerem recaída dentro de um período de 1 ano. A profilaxia secundária pode diminuir a taxa de recorrência para 20%.32 O tratamento-padrão inclui a administração de norfloxacina a uma dose de 400 mg/dia, por via oral. A probabilidade de sobrevida de 1 ano após um episódio de PBE é de apenas 40%. Deste modo, os pacientes elegíveis devem ser avaliados para receberem THO após a resolução da peritonite.

A profilaxia primária deve ser considerada para pacientes com cirrose e níveis baixos de proteína no líquido ascítico (< 1,5 g/dL) com insuficiência hepática em estágio avançado (escore de Child-Pugh = 9 pontos, com níveis séricos de bilirrubina = 3 mg/dL) ou função renal comprometida (creatinina sérica = 1,2 mg/dL, uréia = 55 mg/dL ou sódio sérico = 130 mEq/L). A profilaxia primária com fluoroquinolonas, como a norfloxacina (400 mg/dia) ou ciprofloxacina (500 mg/dia), diminui a incidência de PBE, retarda o desenvolvimento de SHR e melhora a sobrevida33.

 

Sangramento de varizes

A ruptura de varizes gastresofágicas em decorrência de hipertensão portal é uma complicação severa e frequente da cirrose.34 A hipertensão portal é causada pelo aumento da resistência vascular intra-hepática e aumento do fluxo sanguíneo na veia porta atribuível à vasodilatação esplâncnica. Recomenda-se que todos os pacientes com cirrose sejam submetidos a uma avaliação para detecção de varizes gastresofágicas. O risco de sangramento de varizes esofágicas depende do grau de hipertensão portal, diâmetro das varizes, presença de “red spots” sob visualização endoscópica e insuficiência hepática. Os indivíduos com “alto risco” de desenvolvimento de varizes devem receber profilaxia primária (ver adiante). Aqueles sem varizes devem fazer exame de endoscopia digestiva alta a cada 2 anos ou quando ocorrer descompensação clínica. Indivíduos com varizes pequenas e função hepática preservada (varizes de baixo risco) devem repetir a endoscopia a intervalos de 1 ano.35 Embora os betabloqueadores não seletivos (nadolol ou propranolol) sejam o tratamento de escolha para profilaxia primária, existem algumas limitações a seu uso.36 Estes fármacos devem ser administrados em etapas, aumentando a dose até que a frequência cardíaca em repouso sofra uma queda equivalente a 25% dos níveis basais. Outra abordagem consiste em erradicar as varizes com várias sessões de ligadura endoscópica de varizes. A terapia farmacológica e a terapia endoscópica são igualmente efetivas na redução (em 40 a 50%) do risco de sangramento.37 O tratamento endoscópico deve ser instituído aos pacientes cirróticos para os quais o uso de betabloqueadores seja contraindicado. Uma combinação de ligação de varizes com faixa e betabloqueadores parece ser mais efetiva do que o uso isolado de betabloqueadores e está sendo avaliada em amplos estudos clínicos. A terapia inicial para o sangramento agudo de varizes deve ser voltada para a correção da hipovolemia, alcance da hemostasia e prevenção de complicações severas (como insuficiência renal, infecções bacterianas e EH). A reposição de volume e a necessidade de transfusão sanguínea devem ser consideradas. É preciso evitar as transfusões excessivas, que podem aumentar a pressão porta e favorecer o recomeço do sangramento varicoso. Plasma fresco congelado e plaquetas, embora sejam usados com frequência, não corrigem com segurança a coagulopatia e podem induzir sobrecarga de volume. A intubação endotraqueal deve ser considerada para pacientes com EH e para aqueles que necessitam de sedação agressiva para se submeterem à endoscopia. Os antibióticos (cefalosporinas de 3ª geração, como 1 g/dia de ceftriaxona ou 2 g cada 12 horas de cefotaxime durante 7 dias) diminuem a taxa de infecções bacterianas e melhoram o resultado.38 Os tratamentos hemostáticos incluem fármacos vasoconstritores, ligadura endoscópica e derivações portossistêmicas cirúrgicas ou TIPS. Os fármacos vasoativos efetivos para o controle do sangramento de varizes incluem a octreotida (bolo de 100 mcg seguido de 50 mcg/h durante 5 dias); terlipressina (2 mg 4/4 h durante as primeiras 48 horas, seguidas de 1 mg 4/4 horas por até 5 dias); e somatostatina (bolo de 250 mcg, seguido da infusão de 250 mcg/h durante 5 dias).39 A terapia farmacológica controla o sangramento varicoso em 75 a 80% dos casos. Pacientes cirróticos com sangramento no trato GI superior devem ser tratados inicialmente com um fármaco vasoativo. Se o exame endoscópico confirmar que as varizes esofágicas são a fonte de hemorragia, deve ser realizada a ligadura endoscópica das varizes, e uma terapia farmacológica deve ser mantida por 5 dias, a fim de prevenir o recomeço precoce do sangramento varicoso. Esta abordagem controla o sangramento na maioria dos pacientes. Em indivíduos com sangramento maciço, o tamponamento com balão pode ajudar temporariamente a controlar a hemorragia. A endoscopia terapêutica pode ser repetida em casos de pacientes que voltam a sangrar. As TIPS e/ou as derivações portossistêmicas cirúrgicas devem ser consideradas para pacientes com instabilidade hemodinâmica ou que sofreram vários episódios de recomeço de sangramento.40 Uma TIPS controla sangramento em mais de 90% dos casos e é preferida à cirurgia de derivação, pois está associada a uma menor morbidade e mortalidade. Todavia, este procedimento pode comprometer a função hepática de pacientes com cirrose em estágio avançado. Os pacientes cuja função hepática está bem preservada (classe de Child A) podem ser beneficiados pela derivação cirúrgica (isto é, derivação mesocava).

Devido ao alto índice de recidiva de sangramento espontânea (60%), a profilaxia secundária contra o sangramento varicoso é recomendada. A terapia farmacológica com betabloqueadores não seletivos e as sessões repetidas de ligadura de varizes são similarmente efetivas. O efeito benéfico dos betabloqueadores deve ser garantido com a medida do gradiente de pressão venosa hepática (GPVH), se houver disponibilidade. Uma diminuição deste gradiente para menos de 12 mmHg e/ou uma queda de pressão da ordem de 20% em relação ao basal diminui a incidência de sangramento varicoso recidivante.41 A combinação de betabloqueadores e ligação endoscópica com faixa pode ser mais efetiva do que estes tratamentos isolados. Esta abordagem combinada está sendo avaliada. Uma TIPS e/ou derivação portossistêmica cirúrgica podem ser consideradas para pacientes que voltam a apresentar sangramento mesmo sob tratamento farmacológico e endoscópico. As varizes gástricas tendem a sangrar diante de um GPVH menor, em comparação às varizes esofágicas, além de sangrarem mais severamente. Nos casos de sangramento de varizes gástricas, tanto a escleroterapia com injeção de cianoacrilato como a TIPS têm sido usadas de maneira efetiva para estabelecer a hemostasia e prevenir a volta do sangramento.42

 

Síndrome hepatopulmonar e hipertensão portopulmonar

A síndrome hepatopulmonar (SHP) desenvolve-se em alguns pacientes com cirrose hepática e é caracterizada por uma hipoxemia atribuível à derivação intrapulmonar e/ou incompatibilidade de ventilação-perfusão pulmonar decorrente de vasodilatação pulmonar.43 Os pacientes com SHP não apresentam doença parenquimatosa pulmonar evidente, mas têm ortodeoxia, que consiste no achado incomum de hipoxemia aumentada com a mudança da posição supinada para a posição em pé.44 Outras manifestações típicas incluem a dispneia por esforço, platipneia e baqueteamento digital. A avaliação diagnóstica inclui a gasometria do sangue arterial, ecocardiografia intensificada com contraste e varredura cerebral com albumina macroagregada marcada com tecnécio-99m. Pode ser necessário realizar o exame de angiografia pulmonar para detectar as discretas comunicações arteriovenosas. Agentes farmacológicos, como o bismesilato de almitrina, prostaglandina F-2-alfa, indometacina, somatostatina e azul de metileno, têm sido empregados no tratamento da SHP, todavia com resultados desapontadores. Embora a TIPS possa melhorar a oxigenação, o THO é o único tratamento curativo. Cerca de 80% dos pacientes com SHP eventualmente apresentam melhora da oxigenação em 6 meses, após o THO.45

A hipertensão portopulmonar ocorre em 2 a 8% dos pacientes com cirrose. O diagnóstico é estabelecido por meio do exame de ecocardiografia e/ou cateterismo cardíaco à direita, para confirmar a elevação da pressão na artéria pulmonar. O tratamento médico com prostaciclina (prostaglandina I2) ou bosentan falha frequentemente. Em muitos centros, o THO é contraindicado para pacientes com hipertensão pulmonar severa (pressão arterial pulmonar média > 40 a 45 mmHg).46

 

Encefalopatia hepática (EH)

A EH é uma síndrome observada em pacientes com cirrose em estágio avançado, caracterizada por alterações da personalidade, comprometimento intelectual, sintomas neuromusculares e depressão do nível de consciência.47 Vários mecanismos foram implicados na gênese da EH.36 A hiperamonemia é causada pela síntese intestinal aumentada, captação hepática reduzida e diminuição da capacidade muscular de depurar a amônia. O sangramento GI e a hipovolemia intensificam a liberação de amônia renal na circulação. A produção cerebral de glutamina aumenta e resulta em disfunção da glia. As infecções e a subsequente resposta inflamatória à infecção podem precipitar a EH ao alterarem a função da microglia. O reduzido fluxo sanguíneo cerebral decorrente da vasoconstrição cerebral local também pode exercer algum papel.48 Por fim, um aumento do conteúdo de água no cérebro e a formação de um edema cerebral de baixo grau, atribuível ao aumento da concentração de solutos osmoticamente ativos, podem exercer algum efeito patogênico. Pacientes com “parkinsonismo hepático” em geral exibem deposição aumentada de manganês no globo pálido. Os sintomas de EH são graduados em uma escala de 0 a 4 [Tabela 4].

 

Tabela 4. Graduação da EH

Grau

Manifestação clínica

0

(Subclínica) Condição mental normal, porém com alterações mínimas de memória, concentração, função intelectual e coordenação

1

Confusão leve, euforia ou depressão, diminuição da atenção, retardo da capacidade de realizar operações mentais, irritabilidade, perturbação do padrão de sono (p. ex., ciclo de sono invertido)

2

Sonolência, letargia, déficits grosseiros da capacidade de realizar operações mentais, alterações de personalidade evidentes, comportamento inapropriado, desorientação intermitente (geralmente em relação ao tempo)

3

Indivíduo sonolento, mas despertável; incapacidade de realizar operações mentais, desorientação em relação ao tempo e a lugares, confusão acentuada, amnésia, ataques de raiva ocasionais, fala incompreensível

4

Coma, com ou sem resposta a estímulos dolorosos

EH = encefalopatia hepática.

 

O diagnóstico de EH baseia-se na condição mental alterada e em sinais neuromusculares, na ausência de qualquer tipo de doença neurológica ou mental específica. Os achados típicos obtidos com o exame físico incluem asterixe e hálito hepático. Níveis séricos de amônia elevados no sangue venoso livre ou no sangue arterial são encontrados com frequência. Os pacientes costumam apresentar alterações eletroencefalográficas de ondas de alta amplitude e baixa frequência, bem como de ondas trifásicas. Os exames de TC e RM cerebral podem ser importantes para excluir a hipótese de doença neurológica. Dependendo das características clínicas, a EH pode ser classificada em episódica, persistente ou mínima. Recentemente, foi proposto que a encefalopatia mínima fosse utilizada para identificar pacientes com manifestações sutis de EH, indetectáveis pelos exames clínicos padrão.49 Os fatores comumente precipitantes de EH incluem a terapia diurética, insuficiência renal, sangramento GI, infecções bacterianas e constipação. A sobrecarga proteica dietética é uma causa pouco frequente de piora da encefalopatia. As medicações, notavelmente os opiáceos, benzodiazepínicos, antidepressivos e agentes antipsicóticos, também podem agravar os sintomas de encefalopatia. As derivações portossistêmicas cirúrgicas e as TIPS favorecem o desenvolvimento da encefalopatia. O diagnóstico diferencial da EH inclui as lesões intracranianas, as infecções no sistema nervoso central, a encefalopatia metabólica, a encefalopatia tóxica atribuível ao consumo de álcool ou drogas, e a encefalopatia pós-convulsão.

No tratamento inicial da EH, os fatores precipitantes devem ser identificados e corrigidos.50 A lactulose e/ou lactitol são úteis para pacientes que apresentam manifestação aguda de sintomas de encefalopatia severa, bem como para aqueles com sintomas crônicos mais leves.51 A lactulose e o lactitol estimulam o deslocamento da amônia dos tecidos para dentro do lúmen intestinal (e das fezes) e inibem a produção intestinal de amônia. A dosagem inicial de lactulose é 30 mL, por via oral, 1 a 2 vezes/dia. Esta dosagem é aumentada até que o paciente evacue 2 a 4 fezes moles/dia. A dosagem deve ser reduzida se o paciente apresentar queixas de diarreia, cólica abdominal ou distensão abdominal por acúmulo de gases. Doses mais altas de lactulose podem ser administradas via tubo nasogástrico ou tubo retal em pacientes internados com encefalopatia severa. A neomicina (2 a 6 g/dia), metronidazol (250 mg/dia), rifaximina (1.200 mg/dia) e outros antibióticos orais (vancomicina, paromomicina e fluoroquinolonas) atuam como agentes de 2ª linha, porém sua eficácia foi demonstrada de maneira convincente.52,53 Os antibióticos atuam diminuindo a concentração no cólon de bactérias geradoras de amônia. Outros compostos químicos capazes de diminuir os níveis sanguíneos de amônia são a L-ornitina L-aspartato (disponibilizada na Europa) e o benzoato de sódio. O uso a curto prazo do flumazenil, um antagonista do receptor de benzodiazepínico, pode promover efeitos benéficos sobre o despertar de curta duração a partir dos estágios mais profundos de encefalopatia. As dietas pobres em proteína não são recomendadas, pois podem piorar a condição catabólica destes pacientes e favorecer a desnutrição. Em pacientes com derivações portossistêmicas, incluindo as DPIT, a diminuição do diâmetro da derivação pode ser considerada diante de uma EH severa e irresponsiva à terapia médica. Em pacientes com encefalopatia persistente e função hepática relativamente bem preservada, a possibilidade de uma ampla derivação portossistêmica espontânea deve ser considerada, pois pode haver melhora da EH após o fechamento radiológico. Como a EH está associada a um prognóstico ruim a curto prazo, os pacientes com encefalopatia episódica e/ou permanente devem ser avaliados para um possível THO.

 

Carcinoma hepatocelular (CHC)

O CHC é uma das principais causas de mortalidade entre os pacientes cirróticos.54 A incidência anual de CHC na cirrose atribuível à infecção pelo HCV é de 3 a 5%. A vigilância para detecção do CHC em estágio inicial é baseada na realização do exame de US a cada 4 a 6 meses. Recomenda-se que os nódulos menores que 1 cm, que são malignos em menos de 50% dos casos, sejam acompanhados intensivamente. O diagnóstico de CHC é estabelecido com base em níveis séricos de alfafetoproteína elevados; achados de US, TC helicoidal e RM; e cito-histologia positiva. O prognóstico do CHC nos estágios iniciais reside na condição tumoral, função hepática e tratamento instituído. Os diversos sistemas de estadiamento (Barce­lona Cancer Liver Center, Okuda etc.) usam características tumorais e a função hepática para classificar os pacientes com CHC.55 Infelizmente, muitos pacientes com CHC continuam sendo diagnosticados em estágios avançados da doença, e isto impossibilita a instituição dos tratamentos curativos. As taxas de sobrevida de 3 anos dos pacientes com doença em estágios intermediário e avançado são, respectivamente, 65% e 16%. Os tratamentos curativos para CHC incluem a ressecção cirúrgica, o THO e a ablação percutânea. A ressecção e o THO alcançam os melhores resultados em candidatos devidamente selecionados (sobrevida de 5 anos = 60 a 70%), enquanto os tratamentos percutâneos propiciam os piores resultados (sobrevida de 5 anos = 40 a 50%). O transplante é o tratamento ideal para pacientes que possuem uma única lesão com diâmetro = 5 cm ou que possuem até 3 lesões com diâmetros < 3 cm, além de cirrose descompensada.56 A embolia arterial pode melhorar a qualidade de vida e, em alguns casos, melhorar a sobrevida. O tamoxifeno aparentemente não produz efeito benéfico significativo. O sorafenibe, um inibidor de múltiplas quinases, promove uma melhora modesta na sobrevida de pacientes com CHC em estágio avançado.57

 

Indicações para o transplante hepático

O THO tem papel decisivo no tratamento de pacientes com cirrose em estágio avançado.58 Nos Estados Unidos, mais de 3.000 transplantes de fígado são realizados a cada ano. Entretanto, como o número de candidatos ao transplante é significativamente maior do que o número de doares de fígado disponíveis, a seleção e o momento do encaminhamento do paciente são fatores essenciais. Os índices bioquímicos variam, dependendo de a hepatopatia ser causada por condições hepatocelulares ou por distúrbios hepáticos colestáticos crônicos [Tabela 5]. Pacientes com níveis séricos de bilirrubina acima de 3 mg/dL e doença não colestática ou níveis abaixo de 5 mg/dL e distúrbios não colestáticos; tempo de protrombina prolongado em mais de 5 segundos; ou níveis séricos de albumina abaixo de 2,5 g/dL devem ser encaminhados para avaliação de transplante. Os critérios clínicos incluem CHC, EH, ascite refratária, sangramento varicoso recorrente, PBE e prurido incurável. As complicações clínicas da hepatopatia colestática, como o prurido intratável, colangite bacteriana recorrente e doença óssea progressiva, muitas vezes justificam o transplante hepático antes do desenvolvimento de EH ou hemorragia varicosa. Entre as contraindicações para THO, estão a doença cardiovascular ou pulmonar severa; uso abusivo ativo de drogas ou álcool; tumor maligno extra-hepático; sepse; ou problemas psicossociais que possam por em risco a capacidade do paciente de seguir o regime médico após o transplante. A existência de infecção por HIV já foi considerada uma relativa contraindicação ao THO. Entretanto, transplantes de fígado bem-sucedidos atualmente são realizados em pacientes sem carga viral de HIV detectável, como resultado da terapia antirretroviral. Os avanços introduzidos na técnica cirúrgica, preservação de órgãos e imunossupressão resultou em um aprimoramento dramático da sobrevida pós-operatória, ao longo das últimas 2 décadas.59 No início dos anos 1980, os percentuais de pacientes que sobreviviam por 1 ano e por 5 anos após receberem um transplante de fígado eram de apenas 70% e 15%, respectivamente. Hoje, os pacientes podem esperar taxas de sobrevida de 1 ano e de 5 anos da ordem de 85% e acima de 70%, respectivamente. A qualidade de vida após o transplante hepático é boa, na maioria dos casos. Cerca de 15% dos pacientes listados como candidatos morrem durante a espera por um THO, devido à escassez de doadores de órgão. Entre as estratégias adotadas para amenizar a atual falta de doadores de órgãos, estão os programas de intensificação da consciência pública acerca da importância da doação de órgãos, o aumento do uso de transplantes de fígado de doador vivo para receptores pediátricos, e a exploração da eficácia e segurança do transplante de fígado de doador vivo para adultos.60

 

Tabela 5. Indicações para transplante de fígado

Doença

Critérios

Hepatopatia hepatocelular

Bilirrubina sérica > 3 mg/dL

Albumina sérica < 2,5 g/dL

Tempo de protrombina > 5 segundos acima do controle

Hepatopatia colestática

Bilirrubina sérica > 5 mg/dL

Prurido intratável

Doença óssea progressiva

Colangite bacteriana recorrente

Hepatopatia hepatocelular e colestática

Encefalopatia recorrente ou EH severa

Ascite refratária

PBE

Sangramento hipertensivo porta recorrente

Desnutrição progressiva

SHR

CHC (< 3 nódulos; sem nódulos > 5 cm; sem invasão porta)

CHC = carcinoma hepatocelular; EH = encefalopatia hepática; PBE = peritonite bacteriana espontânea; SHR = síndrome hepatorrenal.

 

Prognóstico

O prognóstico de pacientes com cirrose depende da doença subjacente, ocorrência de complicações significativas (ascite, sangramento GI, encefalopatia, SHR, infecções bacterianas), grau de insuficiência hepática e existência de CHC. Em pacientes com cirrose compensada, a probabilidade de desenvolvimento de complicações clínicas significativas e a taxa de probabilidade de sobrevivência de 10 anos são, respectivamente, de 58% e 47%. Para pacientes com cirrose descompensada, o prognóstico pode ser estimado pela classificação de Child-Pugh e, mais recentemente, pelo escore MELD.61 As variáveis incluídas no escore de Child-Pugh refletem as funções hepáticas de síntese (albumina e tempo de protrombina) e excreção (bilirrubina), bem como as complicações significativas (ascite e encefalopatia). Em contraste, o escore MELD inclui apenas variáveis numéricas que refletem a função hepática (tempo de protrombina e bilirrubina) e a função renal (creatinina sérica). A principal vantagem do escore MELD é ser baseado em variáveis objetivas, que foram selecionadas por sua influência sobre o prognóstico. Além disso, o escore MELD é contínuo e isto ajuda a pontuar os indivíduos com maior precisão em meio a populações amplas.62 Contudo, o escore MELD ainda não foi validado em algumas situações clínicas. Exemplificando, em pacientes com SHR de tipo 1, o escore MELD pode subestimar a sobrevida do paciente.63,64 Atualmente, este escore é usado pela maioria dos centros de transplante dos Estados Unidos para alocação dos pacientes que aguardam na lista de espera por um transplante de fígado.

 

Ramón Bataller, MD, e Pere Ginès, MD, não possuem relações comerciais com os fabricantes de produtos e prestadores de serviço mencionados neste capítulo.

 

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