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Índice

Pós-Operatório de Cirurgia Cardíaca

Autores:

Dirceu Thiago Pessoa de Melo

Cardiologista pelo Incor/HC-FMUSP

Fábio Figueirêdo Costa

Cardiologista pelo Incor/HC-FMUSP

Márcia Sundim

Cardiologista pelo Incor/HC-FMUSP

Ludhmila Abrahao Hajjar

Medica Assistente da Unidade de Terapia Intensiva Cirúrgica do Instituto do Coração do HC FMUSP, desde janeiro de 2005.
Aluna matriculada no Programa de Pós-graduação (Doutorado) pela FMUSP.

Última revisão: 11/07/2010

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INTRODUÇÃO

Os resultados da cirurgia cardíaca estão relacionados aos fatores de risco pré-operatórios e ao adequado manejo da homeostase durante e após o procedimento cirúrgico. Os principais fatores de risco incluem: disfunção ventricular (fração de ejeção < 30%), lesão de tronco de coronária esquerda, diabetes, insuficiência renal, obesidade, doença pulmonar e idade avançada. A literatura dispõe de diversas metodologias e escores para avaliação de risco e previsão de resultados, fornecendo ferramentas para a avaliação da qualidade do serviço e o desenvolvimento de estratégias de contínuo aperfeiçoamento.

O uso de circulação extracorpórea (CEC), associada à parada cardiorrespiratória, torna a cirurgia cardíaca um procedimento peculiar, já que esses pacientes costumam apresentar resposta inflamatória sistêmica exacerbada, determinando múltiplas disfunções orgânicas. Por este motivo, é fundamental o conhecimento das alterações fisiológicas determinadas pelo estresse cirúrgico, para que se possa manter a homeostase durante e após o procedimento, determinando resultados satisfatórios com mínima morbimortalidade.

 

ALTERAÇÕES FISIOLÓGICAS NO PÓS-OPERATÓRIO

Durante o período de ausência de fluxo coronário na circulação extracorpórea, a demanda miocárdica de oxigênio deve ser reduzida para evitar isquemia e infarto. Tradicionalmente, a cirurgia cardíaca é realizada no coração não pulsátil, após indução de parada cardíaca diastólica com a infusão de solução cardioplégica na raiz da aorta e no seio coronariano. Nos últimos anos, a cirurgia de revascularização do miocárdio sem uso de circulação extracorpórea tem também sido utilizada. Um dispositivo é usado para estabilizar uma pequena área ao redor do alvo na artéria coronária, garantindo mínima movimentação do miocárdio e permitindo a contração cardíaca. Ambas as técnicas apresentam resultados semelhantes, embora se observe que o uso da CEC esteja associado à maior resposta inflamatória, insuficiência renal e coagulopatia no pós-operatório.

Diversos aspectos do intra-operatório têm influência direta no processo de recuperação, dentre eles: manejo da anestesia, cardioplegia, hipotermia e duração da circulação extracorpórea. Esses fatores variam em duração e magnitude de acordo com o tipo de cirurgia e técnica empregada, e em geral determinam redução da contratilidade e complacência cardíacas (Figura 1), além de alterações em diversos órgãos e sistemas. A Tabela 1 resume as principais alterações fisiológicas no pós-operatório.

 

Tabela 1: Alterações fisiológicas no pós-operatório

Sistema cardiovascular

Redução da complacência e contratilidade miocárdicas

Taquicardia sinusal FC 100 a 120

Atrito pericárdico

Pneumopericárdio

Hipotensão ortostática

Eletrocardiograma: hemibloqueios transitórios

Sistema respiratório

Atelectasia

Derrame pleural

Radiografia de tórax com sinais de congestão, a despeito de pressões de enchimento normais ou baixas, por causa das alterações de permeabilidade vascular

Sistema nervoso

Lesão de nervo ulnar e mediano causada por: fratura do 1º arco costal após esternotomia, lesão de plexo braquial, trauma por punção de veia jugular interna, posicionamento inadequado do membro superior

Neuropatia do nervo radial, após retirada da artéria radial, em geral de curso benigno

Distúrbios visuais transitórios: perda de acuidade visual, ofuscamento e escotomas

Disfunção cognitiva, em geral transitória

Trato gastrointestinal e geniturinário

Constipação e retenção urinária

Inapetência

Disgeusia (alteração do paladar)

Íleo paralítico

Alterações laboratoriais

Anemia decorrente de perdas e hemodiluição

Plaquetopenia < 100.000, redução da meia-vida das plaquetas induzida pela CEC

Leucocitose

Hiperglicemia

Hipercortisolismo

Acidose metabólica

Hipo/Hipercalemia

Hipocalcemia

Hipofosfatemia

Redução do nível sérico de folato e homocisteína

CEC: circulação extracorpórea.

 

Figura 1: Para pacientes com função ventricular pré-operatória normal (> 50%), este gráfico descreve a evolução da fração de ejeção nas primeiras 24 horas após cirurgia cardíaca.

 

 

ADMISSÃO NA UTI

Na chegada do paciente à unidade de terapia intensiva, deve-se proceder a uma abordagem sistemática, com o objetivo de identificar e tratar prontamente o surgimento de disfunções orgânicas. O intensivista deve identificar o paciente e obter o máximo de informações referentes aos antecedentes pessoais, uso de medicações no pré-operatório e exames complementares. É também fundamental o diálogo com a equipe de anestesistas e cirurgiões, para coleta detalhada das intercorrências do intraoperatório.

No serviço de pós-operatório de cirurgia cardíaca do Instituto do Coração/HC-FMUSP, adota-se a rotina resumida nas Tabelas 2, 3 e 4.

 

Tabela 2: Admissão da UTI – Identificação e antecedentes

Identificação: nome, sexo, idade, peso, diagnóstico

Doenças de base: hipertensão, diabetes, doença arterial periférica, tabagismo/etilismo, uso de drogas ilícitas, DPOC, doença pulmonar intersticial, doença cerebrovascular, insuficiência renal, doença hepática, alergias, cirurgias prévias, neoplasias

Status funcional: sequela neurológica, demência, uso de órteses/próteses, estado nutricional

Medicações: antiagregantes, anticoagulantes, antiarrítmicos, betabloqueadores, bloqueadores do canal de cálcio, nitratos e IECA

Exames complementares: eletrocardiograma, radiografia de tórax, ecocardiograma, coronariografia

DPOC: doença pulmonar obstrutiva crônica; IECA: inibidores da enzima conversora de angiotensina.

 

Tabela 3: Admissão na UTI – Dados do intraoperatório

Anestesia

Cirurgia

CEC

Tipo

Procedimento

Duração

Monitoração

Duração

Proteção

Intercorrências

Intercorrências

Hipotermia

Balanço hídrico

Drenos

Tempo de anóxia

Diurese

Esterno aberto

Antifibrinolíticos

Drogas vasoativas

Assistência

Hemoderivados

CEC: circulação extracorpórea.

 

Tabela 4: Admissão na UTI – Exame físico

Inspeção geral

Checar débito de sondas e drenos, posicionamento correto do cateter central, marca-passo epicárdico, tubo orotraqueal e pressão arterial invasiva

Neurológico

Avaliar nível de sedação e curarização, pupilas e déficits neurológicos focais

Cardiovascular

Avaliar coloração da pele e temperatura, perfusão periférica, pressão arterial, frequência cardíaca e ritmo. Ausculta cardíaca à procura de sopros, abafamento de bulhas e atrito pericárdico; checar dose de drogas vasoativas

Respiratório

Ausculta pulmonar, avaliar oxigenação, sincronia paciente-ventilador, parâmetros ventilatórios, presença de dreno pleural

Trato digestivo

Avaliar jejum, débito de sonda nasogástrica, sinais de distensão abdominal e redução de ruídos hidroaéreos

Trato geniturinário

Avaliar volume urinário, presença de hematúria e sinais de bexigoma

Hematológico

Monitorar sinais de sangramento em ferida operatória e débito dos drenos

 

ROTINAS E PRESCRIÇÃO MÉDICA

Os cuidados do paciente no pós-operatório de cirurgia cardíaca são multidisciplinares e envolvem a participação de médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem, fisioterapeutas e nutricionistas. Para o manejo adequado e ação coordenada da equipe, é importante o desenvolvimento de protocolos adequados à realidade e à necessidade de cada serviço.

Após a chegada do paciente na UTI, com a coleta de dados e minucioso exame físico, procede-se a realização de eletrocardiograma, radiografia de tórax e exames laboratoriais, segundo a rotina descrita na Tabela 5.

 

Tabela 5: Exames laboratoriais

Exames

POi

1 PO

2 PO

Na/K

A cada 6 h

A cada 12 h

1 vez/dia

Hb/Ht

A cada 6 h

2 vezes/dia

1 vez/dia

Dextro

A cada 2 h

A cada 2 h

A cada 2 h

Cálcio iônico

2 vezes/dia

1 vez/dia

1 vez/dia

Mg

1 vez/dia

ACM

ACM

Ur/Cr

1 vez/dia

1 vez/dia

1 vez/dia

Gasometria arterial

A cada 6 h

A cada 12 h

ACM

Gasometria venosa

A cada 6 h

A cada 12 h

1 vez/dia

Lactato

A cada 6 h

1 vez/dia

ACM

Contagem de plaquetas

1 vez/dia

1 vez/dia

ACM

Coagulograma

1 vez/dia

ACM

ACM

Radiografia de tórax

1 vez/dia

1 vez/dia

1 vez/dia

Eletrocardiograma

2 vezes/dia

2 vezes/dia

1 vez/dia

POi: pós-operatório imediato; ACM: a critério médico.

 

A prescrição médica deve ser elaborada conforme a rotina de cada unidade e de acordo com o julgamento clínico de cada caso. Como medidas gerais, sugere-se:

 

      dieta: jejum, soro glicosado a 5% IV contínuo;

      profilaxia para úlceras de estresse: omeprazol 40 mg IV 1 vez/dia;

      analgesia após extubação: tramadol 50 mg IV a cada 6 horas + dipirona 1 g IV a cada6 horas;

      protocolo de controle glicêmico: insulina regular 100 UI + SF0,9% 100 mL IV conforme dextro de a cada 1 hora, se duas glicemias capilares consecutivas > 200 mg/dL;

      antibioticoterapia profilática: cefuroxima 1,5 g IV na indução anestésica e 750 mg IV a cada 6 horas por 24 a 48 horas;

      profilaxia de TVP: em geral, não é utilizada nas primeiras 48 horas. No 3º dia PO, pode-se considerar o uso de heparina de baixo peso molecular (enoxaparina 40 mg SC 1 vez/dia), caso o risco de sangramento seja baixo e na ausência de discrasias sanguíneas. Caso haja contraindicação ao uso de heparina, considerar o uso de meia elástica ou compressor pneumático;

      anticoagulação: em geral, não é utilizada nas primeiras 48 horas. Nos pacientes sem sangramento ativo, com baixo débito dos drenos e indicação de anticoagulação plena, como os portadores de válvulas metálicas, deve-se iniciar heparina não fracionada em bomba de infusão contínua no 1º dia PO. Ajustar dose conforme tempo de tromboplastina parcial ativado (TTPa) a cada 6 horas. O alvo terapêutico deve ser individualizado de acordo com a posição da prótese. Recomenda-se R 2 a 3 para prótese aórtica e 2,5 a 3,5 para prótese mitral;

      marca-passo epicárdico: quando inserido tanto no átrio direito quanto no ventrículo direito, permite o tratamento de todos os tipos de bradicardia e a utilização do overdrive pacing nas taquiarritmias. A remoção desse dispositivo deve ser planejada para o dia anterior à alta hospitalar, utilizando-se tração de forma delicada. Para pacientes recebendo varfarina, o INR deve estar abaixo de 1,5 para a retirada. O paciente deve permanecer deitado por cerca de 2 horas após retirada do dispositivo. Nas raras ocasiões em que a remoção não for possível, tracionar os fios sem excesso de força e cortá-los rente à pele.

 

MONITORAÇÃO

A monitoração do paciente deve incluir termômetro, cardioscópio, oximetria de pulso, cateter venoso central, pressão arterial invasiva e cateter de artéria pulmonar em casos selecionados. Parâmetros de macro e micro-hemodinâmica são importantes para a adequada reposição volêmica, manejo de drogas vasoativas e diagnóstico precoce de complicações.

 

Parâmetros de Macro-hemodinâmica

      Pressão arterial média;

      perfusão periférica/tempo de enchimento capilar;

      diurese;

      pressão venosa central;

      débito cardíaco;

      pressão de oclusão de artéria pulmonar.

 

Parâmetros de Micro-hemodinâmica Global

      Saturação venosa central;

      lactato arterial;

      excesso de bases;

      diferença venoarterial de CO2.

 

O cateter de artéria pulmonar é frequentemente utilizado no pós-operatório para avaliação do débito cardíaco, pressão de artéria pulmonar e pré-carga ventricular. Tipicamente, é inserido no pré-operatório em pacientes com maior risco de complicações, em especial portadores de disfunção ventricular, insuficiência renal, cirurgia combinada de valva e bypass coronariano, reoperação, hipertensão pulmonar e portadores de comorbidades graves. Nos pacientes com evolução desfavorável e que não possuam o dispositivo, a inserção pode ser realizada.

O eletrocardiograma deve ser realizado diariamente, com objetivo de detectar alterações sugestivas de isquemia (ondas Q, alteração do segmento ST) ou distúrbios do ritmo. Para tanto, é fundamental a comparação entre os traçados pré e pós-operatórios. Nas primeiras 48 horas, deve ser realizado 2 vezes/dia.

O ecocardiograma é uma ferramenta útil para o diagnóstico de complicações no pós-operatório, tais como disfunção ventricular, alterações segmentares sugestivas de isquemia, tamponamento cardíaco e disfunções valvares. Não deve, entretanto, ser indicado de rotina, mas apenas de acordo com suspeita clínica.

 

REPOSIÇÃO VOLÊMICA

A reposição volêmica no pós-operatório visa a manter adequada a oferta de oxigênio e a perfusão tecidual. Na realização da reposição volêmica, é importante reconhecer o compartimento depletado para que as perdas possam ser repostas com o fluido apropriado.

 

Causas de Depleção de Fluidos e Água Perioperatória

      Jejum pré-operatório;

      transferência de líquidos do espaço intravascular para o interstício pela resposta inflamatória sistêmica e consequente aumento da permeabilidade vascular;

      vômitos;

      vasodilatação;

      sepse;

      uso de circulação extracorpórea.

 

Os cristaloides devem ser os fluidos de primeira escolha para reposição volêmica; os coloides também podem ser utilizados, especialmente em pacientes anasarcados, hipoalbuminêmicos, com lesão pulmonar aguda ou que receberam mais de 3 litros de solução cristaloide. Deve-se ter cuidado com a administração de coloides à base de amido nos pacientes com insuficiência renal, coagulopatia e hipernatremia. Nunca utilizar plasma com o objetivo de reposição volêmica. Até o presente momento, os estudos não foram capazes de demonstrar superioridade de reposição volêmica com albumina em comparação à reposição volêmica com cristaloides.

Devem-se utilizar os parâmetros de macro e micro-hemodinâmica citados previamente, como guias para a adequada reposição volêmica. Além destes, alguns parâmetros clínicos são de grande relevância para o correto manejo da reposição volêmica, como a melhora do nível de consciência e da sede, a manutenção de valores de pressão arterial média > 65 mmHg, frequência cardíaca < 100 bpm e diurese > 0,5 mL/kg/h.

A reposição volêmica deve ser criteriosa para evitar complicações, tais como edema pulmonar, anasarca, hipernatremia e coagulopatia dilucional.

 

SEDAÇÃO E ANALGESIA

A sedação deve ser realizada visando ao bom acoplamento paciente/ventilador e à redução da ansiedade. Escalas de monitoração da sedação devem ser aplicadas diariamente, para evitar a sedação excessiva dos pacientes e seus consequentes malefícios, como a ventilação mecânica prolongada. O despertar diário também deve ser realizado em todos que não tenham contraindicação a ele. Quando houver necessidade de sedação por período prolongado, deve-se dar preferência à utilização do midazolam. Evitar a utilização do propofol em pacientes hemodinamicamente instáveis. O etomidato pode ser uma boa alternativa de sedação para pacientes hemodinamicamente instáveis que necessitam realizar procedimentos, como cardioversão ou entubação orotraqueal.

A utilização de dexmedetomidina já provou ser segura em pacientes em pós-operatório de cirurgia cardíaca. Quando comparado ao propofol, apresentou menor necessidade de utilização de morfina para obtenção de sedação/analgesia adequada. Deve-se, porém, estar atento à possibilidade de ocorrência de hipotensão e bradicardia, dois efeitos colaterais dessa medicação.

O uso de opioides apresenta como vantagem o efeito combinado de analgesia e sedação. Entretanto, por causarem vasodilatação periférica e suas consequências, devem ser usados com atenção no pós-operatório de cirurgia cardíaca. É importante garantir conforto e mobilidade a esses pacientes utilizando doses suficientes de analgésicos, prevenindo assim a formação de atelectasias e o aparecimento de hipoxemia.

Após a retirada do tubo endotraqueal, dar preferência à realização de anestesia em intervalos regulares, sendo necessária reavaliação frequente para a titulação das doses a serem utilizadas.

Na UTI pós-operatória do InCor/HC-FMUSP, utiliza-se o seguinte esquema para analgesia:

 

      dipirona IV 30 mg/kg a cada 6 horas, associada a tramadol 50 a 100 mg IV a cada 6 horas;

      casos de dor moderada: morfina IV em doses fracionadas para evitar depressão respiratória e instabilidade hemodinâmica;

      em casos de dor intensa, não controlada com bolus de morfina, deve-se utilizar infusão contínua em doses programadas;

      na dor persistente, associada ou não à presença de drenos no tórax, recomenda-se a realização de bloqueio intercostal ou peridural com cateter para infusão de analgésicos, precedida por avaliação da coagulação.

 

Em casos de alergias ou instabilidade hemodinâmica que contraindiquem a utilização desses fármacos, pode-se utilizar o paracetamol 750 mg/dose a cada 6 horas. Os anti-inflamatórios não hormonais possuem indicação restrita no pós-operatório de cirurgia cardíaca.

 

DIAGNÓSTICO E TRATAMENTO DAS DISFUNÇÕES ORGÂNICAS NO PÓS-OPERATÓRIO

Disfunções Cardiovasculares

Baixo Débito

A manutenção do débito cardíaco adequado é a principal meta do manejo cardiovascular no pós-operatório de cirurgia cardíaca. Não existe número adequado de débito cardíaco; o débito cardíaco adequado é aquele suficiente para atender às demandas metabólicas. Baixo débito cardíaco pode ser definido como a incapacidade do coração em manter fluxo sanguíneo suficiente para atender à demanda metabólica tecidual. Pacientes com baixo débito cardíaco persistente apresentam risco aumentado de complicações/mortalidade pelo aumento do risco de parada cardiorrespiratória, sangramento gastrointestinal, coagulação intravascular disseminada, alterações neurológicas e falências orgânicas.

A função miocárdica geralmente diminui nas primeiras horas após a cirurgia cardíaca, principalmente pela ocorrência de lesões de isquemia e reperfusão, apresentando, na maioria dos casos, retorno às condições basais em um período que costuma variar de 24 a 48 horas. Por esse motivo, a utilização de inotrópicos e vasodilatadores costuma ser benéfica na otimização hemodinâmica, devendo ser mantidos no PO imediato, podendo ser retirados quando o débito cardíaco for adequado.

As metas para os parâmetros hemodinâmicos neste período são:

 

      IC > 2,5 L/min/m2;

      FC > 80 bpm;

      pressão capilar pulmonar < 20 mmHg;

      extremidades aquecidas, bem perfundidas e adequado volume urinário.

 

As manifestações clínicas comuns de baixo débito no PO de cirurgia cardíaca são:

 

      hipotensão arterial (pressão sistólica < 90 mmHg ou queda de 30 mmHg ou mais com relação ao basal). Em algumas ocasiões, pode-se ter baixo débito sem hipotensão pelo aumento importante da resistência vascular sistêmica;

      taquipneia e taquicardia;

      alterações do nível de consciência;

      diminuição da temperatura dos membros e palidez;

      lentificação do enchimento capilar;

      cianose;

      livedo reticular;

      oligúria (diurese < 20 mL/hora);

      aumento da diferença arteriovenosa de oxigênio (CAV): > 5,5 mL/dL;

      IC < 2,2 L/min/ m2;

      diminuição da saturação venosa central;

      aumento do nível sérico de lactato;

      acidose metabólica.

 

Em muitos casos, não é necessário o aparecimento de todas as manifestações citadas para o estabelecimento do diagnóstico de baixo débito. Os dados fornecidos pelo quadro clínico, pela monitoração hemodinâmica e pelos exames complementares, como o ecocardiograma, são fundamentais para o diagnóstico etiológico desta situação.

 As principais etiologias do baixo débito cardíaco são:

 

      causas que reduzem a pré-carga ventricular esquerda: hipovolemia, vasodilatação, tamponamento cardíaco, ventilação mecânica com pressão positiva, disfunção do ventrículo direito por infarto ou hipertensão pulmonar, pneumotórax;

      redução da contratilidade miocárdica: baixa fração de ejeção prévia a cirurgia, isquemia ou infarto do miocárdio, revascularização miocárdica incompleta, hipóxia, hipercarbia, acidose;

      aumento da resistência vascular sistêmica: hipovolemia, disfunção diastólica após utilização de parada circulatória total, vasoconstrição;

      taquicardias/bradicardias.

 

O tratamento deve ser instituído o mais precocemente possível e deve ser guiado pela etiologia e pelo perfil hemodinâmico do baixo débito (Figura 2). Fármacos que melhoram a contratilidade miocárdica e que otimizam as resistências vasculares têm papel fundamental no manejo do baixo débito, em conjunto com a reposição volêmica. Por não serem medicações isentas de efeitos adversos, devem ter suas doses adequadamente tituladas.

Os parâmetros de macro e micro-hemodinâmica já citados previamente são, mais uma vez, os guias da terapêutica. As características dos principais fármacos utilizados podem ser conferidas na Tabela 6.

As medidas gerais para o tratamento são:

 

      oxigenação e ventilação adequadas;

      adequação da volemia;

      suporte inotrópico e agentes vasodilatadores;

      manutenção de níveis adequados de hemoglobina: Hb entre 7,0 e 9,0 costuma ser bem tolerada no cardiopata estável e níveis em torno de 10,0 devem ser almejados para os pacientes com síndromes coronarianas agudas ou com insuficiência cardíaca descompensada;

      suporte mecânico nos casos refratários:

-      balão intra-aórtico (BIA): age pelo princípio da contrapulsação aórtica, aumentando a pressão de perfusão coronariana durante a diástole, diminuindo a pós-carga sistólica, favorecendo, desse modo, o equilíbrio entre a oferta e a demanda de oxigênio, aumentando o débito cardíaco. Utilizado em pacientes com resposta clínica inadequada à otimização volêmica e terapia inotrópica/vasodilatadora. Além do contexto do baixo débito cardíaco pós-operatório, pode ser utilizado no perioperatório de pacientes com disfunção acentuada do VE, na presença de isquemia miocárdica, em arritmias ventriculares recorrentes, na presença de insuficiência mitral isquêmica e na comunicação ventricular pós-infarto;

-      dispositivos de assistência ventricular: seu uso pode ser considerado nos casos de baixo débito refratário ao tratamento farmacológico e uso de BIA. A assistência ventricular pode ser de ventrículo direito, esquerdo ou biventricular. Pode ser utilizado como ponte para transplante nos refratários;

-      oxigenação por membrana extracorpórea (ECMO): seu uso é reservado para condições de baixo débito cardíaco refratário associado à função pulmonar inadequada. Seu sistema possui uma bomba centrífuga e um oxigenador de membrana. É mais eficaz em situações complicadas por hipertensão pulmonar, como nas cirurgias das cardiopatias congênitas.

 

Figura 2: Manejo do baixo débito cardíaco.

 

PAM: pressão arterial média; PCP: pressão capilar pulmonar; IV: intravenoso.

 

Tabela 6: Agentes inotrópicos e vasoativos utilizados para tratamento de pacientes em baixo débito no PO de cirurgia cardíaca

Fármaco

Características

Dobutamina

É o inotrópico de escolha. Deve ser mantida nas primeiras 18 a 24 h da cirurgia. Dose: 3 a 20 mcg/kg/min

Norepinefrina

É o vasopressor de escolha. Deve ser iniciada se PAM < 70 mmHg à despeito de volemia otimizada. Dose habitual: 0,05 a 2 mcg/kg/min

Epinefrina

Droga alternativa ou que pode ser associada à norepinefrina no choque refratário. É o vasopressor de escolha na presença de choque associado a bradicardia e no PO de transplante cardíaco. Dose recomendada: 0,05 a 2 mcg/kg/min

Dopamina

É vasopressor e inotrópico, a depender da dose utilizada:

      5 a 10 mcg/kg/min: função inotrópica (estímulo dos receptores beta-1 miocárdicos).

      10 mcg/kg/min: função vasopressora (estímulo dos receptores alfa-adrenérgicos).

Indicações: choque em paciente sem acesso central, baixo débito com ou sem bradicardia refratários à dobutamina

Vasopressina

Opção para pacientes com síndrome vasoplégica, choque séptico e parada cardíaca refratária. Efeito constritor mesmo na presença de hipóxia e acidose. Dose: 0,01 a 0,04 U/min

Levosimendam

Agente sensibilizador do cálcio. Pode ser utilizado em pacientes com IC prévia que utilizam betabloqueador. Não deve ser utilizado em pacientes hipotensos. Pouco estudado no PO de cirurgia.

Milrinona

Promove aumento da contratilidade (inotropismo), vasodilatação periférica, queda da resistência pulmonar e discreta diminuição da pressão arterial média. Apresenta efeito positivo no inotropismo do VD. Pode ser utilizado em substituição ou em associação à dobutamina nos pacientes com IC grave. Habitualmente não se utiliza dose de ataque no PO de cirurgia cardíaca. Dose: 0,37 a 0,75 mcg/kg/min

Nitroglicerina

É um fármaco predominantemente venodilatador, porém, em altas doses, pode reduzir a pós-carga pela diminuição da pressão de enchimento ventricular por reduzir o retorno venoso. Vasodilatador de escolha no PO de revascularização miocárdica. Dose inicial: 0,25 mcg/kg/min, titulada de acordo com PAM

Nitroprussiato de sódio

Vasodilatador de escolha no PO de cirurgia valvar e de aorta. Pode ser utilizado em qualquer situação em que seja necessária a redução da pré e pós-carga. Dose inicial: 0,25 mcg/kg/min. Evitar utilizar doses > 5 mcg/kg/min pela possibilidade de intoxicação por cianeto e tiocianato

Óxido nítrico

Vasodilatador pulmonar seletivo com ação desprezível na resistência vascular sistêmica. Pode ser utilizado em casos de hipertensão pulmonar com disfunção do ventrículo direito. Evitar utilizar em pacientes com disfunção grave de VE. Dose: 10 a 20 ppm por via inalatória.

 

Hipertensão

Definida como pressão arterial média (PAM) acima de 105 mmHg, ou um aumento acima de 20 mmHg acima do basal, ou pressão arterial sistólica acima de 140 mmHg. É especialmente comum e grave em cirurgias valvares, principalmente após correção de estenose aórtica. Costuma aparecer precocemente no PO (entre 1 e 2 horas) e ocorre mais comumente em pacientes com história prévia de HAS, uso pré-operatório de betabloqueador e função ventricular normal antes da cirurgia. Confere maior morbidade e mortalidade ao paciente.

 

1.    Possíveis complicações decorrentes da hipertensão

      ruptura de anastomoses arteriais;

      sangramento mediastinal;

      isquemia miocárdica pela pós-carga excessiva;

      AVC;

      perda da integridade dos enxertos de veia safena e da artéria torácica interna (mamária);

      aumento do risco de sangramento;

      dissecção de aorta;

      maior tempo de ventilação mecânica e de permanência em UTI.

 

A monitoração hemodinâmica costuma revelar débito cardíaco normal ou discretamente diminuído, além de elevação significativa da resistência vascular sistêmica.

Para o tratamento, são utilizados vasodilatadores IV, preferencialmente o nitroprussiato. Deve-se atentar para a possibilidade de redução excessiva da PA diastólica, o que pode acarretar diminuição da pressão de perfusão coronariana com consequente isquemia miocárdica. Por esse motivo, nitroglicerina IV deve ser o agente de escolha para o PO de revascularização miocárdica.

Hipertensão pós-operatória também pode ser encontrada em estados cardiovasculares hiperdinâmicos, com taquicardia sinusal, débito cardíaco normal ou elevado e resistência vascular sistêmica normal ou elevada. Nesses casos, pode-se utilizar betabloqueadores IV, como o metoprolol.

Deve-se evitar o início de anti-hipertensivos orais nas primeiras 24 horas do PO de cirurgia cardíaca, objetivando a titulação de doses mais adequadas das medicações IV.

 

Isquemia Miocárdica

Lesão isquêmica miocárdica perioperatória é uma complicação da cirurgia cardíaca que pode ocorrer entre 3 e 30% dos casos. Os eventos agudos são causados primariamente por limitações à proteção miocárdica durante o procedimento cirúrgico.

A ocorrência desse evento está relacionada ao aumento da mortalidade, e suas principais causas incluem alguns dos fatores de risco citados na Tabela 7, como revascularização incompleta, hipotensão e hipertensão arterial e taquicardia, além de espasmo coronariano, trombose distal ou do próprio enxerto, anemia e problemas técnicos. Isquemia miocárdica que ocorre no período de dias a semanas após o procedimento, geralmente se deve a oclusão do enxerto.

 

Tabela 7: Fatores de risco para isquemia perioperatória

Pré-operatórios

Angina instável ou infarto recente, lesão de tronco de coronária esquerda, idade avançada, diabetes, disfunção ventricular esquerda, aumento da pressão diastólica final do VE e reoperação

Intraoperatórios

Tempo de circulação extracorpórea prolongada, endarterectomia coronariana, revascularização incompleta, instabilidade hemodinâmica, taquicardia e fibrilação ventricular na reperfusão

Pós-operatórios

Hipertensão arterial, hipotensão arterial e taquicardia

 

Como, no pós-operatório, a maioria dos pacientes encontra-se sob efeitos de anestésicos, analgésicos e sedativos, a presença de dor torácica não deve servir de base para suspeição de isquemia miocárdica. A busca dessa complicação deve sempre fazer parte do diagnóstico diferencial de pacientes que evoluem com instabilidade hemodinâmica no PO.

 

1.    Exames complementares para auxílio diagnóstico

      Eletrocardiograma (ECG): o ECG obtido imediatamente após a chegada do paciente na UTI deve ser comparado com o prévio. Em pacientes submetidos à revascularização miocárdica, o surgimento de alterações no segmento ST-T são comuns e não necessariamente diagnóstico de isquemia miocárdica. Entretanto, o surgimento de novas ondas Q patológicas tem alto valor na suspeição de isquemia miocárdica. Aparecimento de bloqueios de ramo direito ou esquerdo novos também devem suscitar essa possibilidade diagnóstica;

      marcadores de necrose: qualquer elevação dos marcadores de necrose reflete necrose miocárdica e o grau de elevação guarda relação com o prognóstico. O padrão de comportamento dos marcadores pode sugerir isquemia quando, ao invés de apresentar rápida queda de seus valores nas horas que se seguem à cirurgia, continuam a elevar-se. Para o diagnóstico de infarto pós-operatório, a elevação de marcadores de necrose, isoladamente, não é suficiente. A presença de valores 5 vezes acima do percentil 99 do limite superior de referência do marcador deve estar associado à pelo menos um dos seguintes, nas primeiras 72 horas, para o diagnóstico de infarto (tipo 5): surgimento de novas ondas Q patológicas e/ou novo BRE e/ou perda de miocárdio viável (contratilidade segmentar) em exame de imagem e/ou documentação angiográfica de oclusão arterial nativa ou do enxerto;

      ecocardiograma: a presença de alterações de contratilidade segmentar do miocárdio é um dos critérios para o diagnóstico de isquemia perioperatória.

 

2.    Tratamento

      Garantir oxigenação adequada; saturação arterial de oxigênio > 95% e níveis de hemoglobina > 9 a 10;

      adequar a volemia do paciente;

      iniciar nitroglicerina IV imediatamente e titular dose conforme parâmetros hemodinâmicos;

      manter PAM entre 70 e 90 mmHg; pode ser necessário associar com nitroprussiato para atingir essa meta. O nitroprussiato também pode ser necessário em condições de baixo débito associado a resistência vascular sistêmica elevada;

      betabloqueadores podem ser utilizados cautelosamente em pacientes que não estejam dependentes de aminas vasoativas, em baixo débito e nem hipovolêmicos. Utilizar naqueles que se encontram hipertensos e taquicárdicos;

      após início de infusão de nitroglicerina, deve-se sempre obter um novo ECG. Caso o ECG tenha normalizado, manter a nitroglicerina por mais 24 horas; caso a alteração eletrocardiográfica persista e o paciente se encontre hemodinamicamente instável, discutir com a equipe cirúrgica a indicação de coronariografia de emergência para diagnóstico e provável intervenção terapêutica, mantendo-se a utilização das drogas inotrópicas, vasodilatadoras e balão intra-aórtico, se necessário. Em casos de estabilidade hemodinâmica, considerar o início de inibidores da enzima conversora de angiotensina e estatinas, além de discutir com a equipe cirúrgica a indicação de coronariografia.

 

Vasoplegia

Caracteriza-se pela ocorrência de resposta inflamatória sistêmica secundária ao procedimento cirúrgico, geralmente aparente nas primeiras 12 horas do pós-operatório. A gênese dessa complicação é multifatorial, envolvendo a ação de citocinas inflamatórias, a ativação do sistema complemento, a ativação leucocitária e o óxido nítrico. O uso pré-operatório de doses elevadas de vasodilatadores, atualmente muito comum nos pacientes submetidos à cirurgia cardíaca, também tem sido implicado como possível fator causador dessa síndrome. Deve-se atentar para o fato de que 30% dos casos de vasoplegia no pós-operatório devem-se à infecção, o que torna a instituição de tratamento precoce medida fundamental para evolução do quadro. A ocorrência de vasoplegia predispõe, ainda, ao desenvolvimento de insuficiência renal e à síndrome do desconforto respiratório agudo.

 

1.    Achados clínicos

      Hipotensão, vasodilatação periférica, taquicardia, taquipneia, queda da resistência vascular sistêmica, oligúria, débito cardíaco normal ou elevado, febre e leucocitose.

 

2.    Tratamento

O tratamento deve ser guiado por monitoração hemodinâmica invasiva, com utilização de cateter de artéria pulmonar e pressão arterial invasiva. Reposição volêmica, com cristaloides ou coloides (na presença de edema pulmonar ou periférico), é a primeira medida a ser tomada na vasoplegia, visando a PAM = 65 mmHg; se, após reposição volêmica adequada, não for atingido o nível de PAM desejado, instituir terapia vasopressora com noradrenalina.

Após 12 horas de circulação extracorpórea, persistindo a vasoplegia ou evidência indubitável de infecção, colher 2 pares de hemocultura com intervalo de 30 minutos entre as amostras, urina I e urocultura. A introdução de antibióticos deve ser criteriosa e fundamentada em sinais clínicos e laboratoriais de infecção; nesse contexto, a presença de elevação dos níveis de procalcitonina pode ser indicativa de infecção.

Deve-se aguardar 24 horas após a suspensão de vasopressor e resolução aparente do quadro para introduzir vasodilatadores, se houver indicação.

 

Tamponamento Cardíaco

É caracterizado por elevação das pressões intracardíacas, limitação do enchimento diastólico, redução do volume sistólico e débito cardíaco. A taquicardia reflexa, secundária ao tamponamento, reduz o tempo de diástole, favorecendo a ocorrência de isquemia miocárdica. O achado clássico do tamponamento no PO é o aumento e a equalização das pressões de enchimento, vistas nas medidas do cateter de artéria pulmonar.

 

Catéter de artéria pulmonar no tamponamento: pressão atrial direita ˜ capilar pulmonar ˜ pressão atrial esquerda ˜ pressão diastólica ventricular.

 

1.    Achados clínicos

      Hipotensão;

      estase de jugulares;

      abafamento de bulhas;

      baixo débito;

      pulso paradoxal;

      cessação ou redução abrupta da drenagem pericárdica;

      PCR em AESP;

      alargamento mediastinal na radiografia de tórax;

      redução da voltagem no ECG;

      achado de líquido pericárdico que causa restrição ao enchimento das câmaras no ecocardiograma.

 

Nem sempre todos os sinais e sintomas estão presentes para o diagnóstico de tamponamento cardíaco, inclusive o achado ecocardiográfico. Na suspeição clínica dessa complicação, o tratamento deve ser rapidamente instituído, pois o sucesso deste depende da precocidade do diagnóstico. Portanto, a realização do ecocardiograma não deve retardar a instituição do tratamento em casos de alta suspeição clínica. A pericardiotomia cirúrgica com lavagem da cavidade, retirada de coágulos e drenagem, constitui o tratamento de escolha. A pericardiocentese (punção de Marfan) deve ser realizada em situações emergenciais, como em caso de parada cardiorrespiratória, nas quais não é possível a abordagem cirúrgica.

 

Fibrilação Atrial

A fibrilação atrial pós-operatória (FAPO) é a complicação mais comum em pacientes submetidos à cirurgia cardíaca, ocorrendo em cerca de 30 a 50% destes. A incidência dessa complicação vem aumentando continuamente nas últimas décadas, sobretudo pela maior prevalência de pessoas mais idosas que vêm se submetendo à cirurgia cardíaca nos últimos anos. Está associada a aumento importante das taxas de mortalidade e morbidade, predispõe os pacientes a maior risco de acidente vascular cerebral (AVC) e aumenta de forma importante os custos do tratamento hospitalar.

A FAPO costuma ocorrer entre o 2º e o 4º dias pós-operatório, com pico de incidência no 2º dia. Geralmente, é uma complicação bem tolerada na maioria dos indivíduos e costuma ser um problema temporário relacionado à cirurgia. Entretanto, em pacientes idosos e/ou com disfunção ventricular esquerda (VE), pode ser uma complicação ameaçadora à vida.

O principal fator de risco relacionado à FAPO é a idade avançada.

 

Tabela 8: Fatores de risco para fibrilação atrial pós-operatória (FAPO)

Pré-operatórios

Idade avançada, hipertensão, diabetes, obesidade, síndrome metabólica, aumento atrial esquerdo, disfunção diastólica, hipertrofia ventricular esquerda e predisposição genética

Intraoperatórios

Injúria atrial cirúrgica, isquemia atrial, abertura da veia pulmonar, canulação venosa e mudanças agudas de volemia

Pós-operatórios

Excesso de volume, aumento de pós-carga, hipotensão

 

1.    Prevenção

Os betabloqueadores orais são a classe de droga mais estudada, até o momento, para uso na prevenção desta arritmia pós-operatória (classe I, nível de evidência A; para pacientes sem contraindicação, que se submeterão à cirurgia cardíaca). Outras estratégias estudadas ou que se encontram em estudo incluem a utilização de amiodarona no pré-operatório, sotalol, marca-passo atrial, bloqueadores do canal de cálcio não di-hidropiridínicos, magnésio, estatinas e ácidos graxos poli-insaturados. Entretanto, o impacto das medidas de prevenção sobre a diminuição da ocorrência de complicações da FAPO, incluindo AVC e custos econômicos, ainda é controverso. No serviço de pós-operatório de cirurgia cardíaca do Instituto do Coração/HC-FMUSP, a profilaxia não é recomendada.

 

2.    Tratamento

O tratamento visa ao controle da frequência cardíaca, à reversão e à manutenção do ritmo sinusal e à prevenção de embolias.

Hipóxia, distúrbios hidroeletrolíticos (especialmente do magnésio e do potássio) e ácido-básicos devem ser sempre corrigidos.

A cardioversão elétrica deve sempre ser realizada nos pacientes que evoluem com instabilidade secundária à arritmia e eletivamente utilizada para reversão ao ritmo sinusal quando uma tentativa de reversão farmacológica não obtiver sucesso. Os aparelhos bifásicos são associados à utilização de doses de energia mais baixas, maiores taxas de cardioversão e menor incidência de lesões de pele. A posição anteroposterior das pás e sedativos de curta duração devem ser preferencialmente utilizados.

Na UTI pós-operatória do InCor/HC-FMUSP, opta-se por tentar reversão para ritmo sinusal, sempre que possível.

Quando se opta inicialmente pela cardioversão farmacológica e ocorre falha da reversão do ritmo após mais de 48 horas de tentativa, deve-se suspender o fármaco que visa a modificar o ritmo e introduzir droga controladora da frequência cardíaca. Iniciar anticoagulação plena e realizar nova tentativa de cardioversão somente após 24 horas de anticoagulação, ou após realização de ecocardiograma transesofágico.

 

Tabela 9: Medicações para controle do ritmo na fibrilação atrial pós-operatória (FAPO)

Amiodarona

1ª escolha no paciente hemodinamicamente estável: 150 mg IV em 100 mL de SF em 30 minutos; se 15 minutos após o término da infusão o paciente persistir em FA, repete-se a dose em bolus. Após esta, se o ritmo é sinusal, deve-se iniciar a infusão contínua (paciente < 60 kg: 900 mg de amiodarona em 250 mL de SF em 24 h; paciente > 60 kg: 1.200 mg), a dose IV é mantida por 24 h, então, modifica-se para via oral 200 mg a cada 8 h por 14 dias, 200 mg a cada 12 h por 14 dias e 200 mg/dia.

Procainamida

10 a 15 mg/kg IV até 50 mg/min

 

Tabela 10: Medicações para controle da frequência cardíaca (FC) na fibrilação atrial pós-operatória (FAPO)

Amiodarona

Droga de escolha na presença de disfunção ventricular importante

Diltiazem

Fármaco utilizado nos casos de intolerância ou contraindicação à amiodarona: dose de ataque 0,25 mg/kg IV seguido de 5 a 15 mg/h IV em infusão contínua

Betabloqueador

Metoprolol 5 mg IV em 5 minutos, repetir até dose máxima de 15 mg com intervalo de 5 minutos entre as doses

Digital

Não é medicação de 1ª linha, mas pode ser usada como droga auxiliar em pacientes com insuficiência cardíaca. Evitar em pacientes com insuficiência renal.

 

Pericardite é manifestação comumente associada à ocorrência de fibrilação atrial pós-operatória; nesses casos, deve-se utilizar hidrocortisona 200 mg IV a cada 8 horas por 3 dias.

A eficácia e a segurança da terapia de anticoagulação para fibrilação atrial pós-operatória, complicação que geralmente se resolve espontaneamente em 4 a -6 semanas, ainda não é completamente estabelecida. Como regra geral, desde que não haja contraindicação, costuma-se anticoagular os pacientes com FAPO prolongada (> 48 horas) e/ou com episódios frequentes de FAPO, além dos pacientes com história prévia de AVC/AIT. Nesses pacientes, recomenda-se que a anticoagulação seja mantida por até 30 dias após a reversão ao ritmo sinusal.

 

Arritmias Ventriculares

Extrassístoles ventriculares e taquicardia ventricular não sustentada (TVNS) que requerem um curso curto de tratamento, são relatadas em até 50% dos pacientes submetidos à cirurgia cardíaca, com pico de incidência ocorrendo entre o 3º e o 5º dia de pós-operatório. A presença de níveis elevados de catecolaminas, necrose miocárdica e alterações eletrolíticas são explicações possíveis para ocorrência dessas arritmias.

Os dados disponíveis na literatura até o momento são insuficientes para afirmar se a ocorrência de tais eventos altera de forma significativa a evolução clínica dos pacientes.

A terapêutica utilizada deve ser individualizada e baseada na suspeição da presença de fatores de risco, como disfunção ventricular esquerda. Hipoxemia, distúrbios eletrolíticos e ácido-básicos devem ser corrigidos em todos os pacientes.

A utilização de marca-passo atrial pode ser uma estratégia para a supressão das extrassístoles; uma alternativa para a presença de extrassístoles frequentes, aos pares ou em salvas, é a utilização de lidocaína por 24 horas. Reposição de magnésio e utilização de amiodarona são alternativas para taquicardia ventricular não sustentada. Para taquicardia ventricular sustentada, dependendo da presença ou não de instabilidade clínica, pode-se utilizar cardioversão elétrica, amiodarona IV ou overdrive pacing.

 

Distúrbios de Condução

Bloqueios atrioventriculares (BAV) podem ser causados por clearance incompleto da solução de cardioplegia, drogas antiarrítmicas ou secundários ao procedimento cirúrgico. Destes, o que mais comumente cursa com BAV é a troca de válvula aórtica e, nesse contexto, costumam ser temporários. Quando causados por trauma ou manipulação cirúrgica na área do nó AV ou feixe de His, podem ser temporários, mas costumam durar vários dias. A transecção completa do nó AV, durante a cirurgia de troca de válvula aórtica, é uma complicação bem estabelecida e leva à BAV permanente.

Os principais fatores de risco para bloqueio atrioventricular permanente e potencial necessidade de implante de marca-passo permanente são os seguintes:

 

      nó AV ou anel valvar aórtico com calcificação extensa;

      aparecimento do BAV horas ou dias após a cirurgia;

      defeito de condução significativo presente no pré-operatório.

 

1.    Tratamento

      Suspensão de medicações que atuem negativamente na condução AV;

      a necessidade da utilização de marca-passo (MP) depende do mecanismo de escape e da adequação da FC.

 

Na ausência de calcificação excessiva, deve-se esperar pela recuperação dos BAV por até 10 a 14 dias antes do implante do marca-passo definitivo.

 

Disfunções Respiratórias

A maioria dos pacientes é extubada entre 4 e 6 horas após o ato cirúrgico. Após a chegada na UTI, é fundamental avaliar a posição do tubo orotraqueal, fazer radiografia de tórax, gasometria arterial e um cuidadoso exame físico pulmonar. Para programação de extubação, alguns critérios devem ser preenchidos:

 

      estabilidade hemodinâmica;

      ausência de sangramentos;

      ausência de complicações neurológicas e adequado nível de consciência;

      adequada troca gasosa.

 

Segundo estudos realizados em pacientes no pós-operatório de cirurgia de revascularização do miocárdio, as principais complicações pulmonares são SARA/edema pulmonar (4,9%) e pneumonia (0,8%), excluídos os casos de atelectasia. A presença dessas complicações está associada a maior tempo de ventilação mecânica e maiores taxas de mortalidade. O principal fator de risco é a disfunção ventricular pré-operatória, sendo mais importante do que a disfunção pulmonar. Estudos observacionais sugerem que a cirurgia com circulação extracorpórea (CEC) está associada a maiores taxas de complicações (SARA/edema pulmonar) quando comparada à cirurgia sem CEC. A explicação para este fato é multifatorial e inclui lesão endotelial pulmonar traumática, hipotermia, lesão de reperfusão na saída de CEC, cessação da ventilação durante a CEC e reações imunológicas secundárias ao uso da protamina e hemoderivados.

O manejo das disfunções pulmonares baseia-se no suporte ventilatório adequado, analgesia e fisioterapia respiratória. Não existem evidências de superioridade entre ventilação mecânica controlada a volume ou pressão, optando-se por este último nos casos associados a pressões elevadas e complacência pulmonar reduzida.

Os principais fatores preditores de ventilação mecânica prolongada (> 48 horas) são:

 

      baixo débito cardíaco;

      hipoalbuminemia;

      sangramentos;

      complicações neurológicas;

      infecção de corrente sanguínea;

      fibrilação atrial com instabilidade hemodinâmica;

      complicações intra-abdominais;

      obesidade;

      tempo de circulação extracorpórea prolongado.

 

Insuficiência Renal

A insuficiência renal é um fator de risco independente para morbidade e mortalidade a curto e longo prazo no pós-operatório de cirurgia cardíaca. A incidência varia entre 2,9 e 7,7%, com um aumento do risco de morte que pode variar de 8 a 27 vezes quando comparado aos pacientes que não desenvolvem insuficiência renal. É interessante notar que o risco permanece elevado mesmo entre aqueles pacientes que apresentam recuperação da função renal antes da alta hospitalar. Os principais fatores de risco para injúria renal incluem:

 

      idade > 75 anos;

      insuficiência renal pré-operatória;

      diabetes;

      disfunção ventricular;

      cirurgia de urgência;

      tempo de circulação extracorpórea > 88 minutos;

      sopro carotídeo;

      obesidade;

      baixo débito cardíaco/hipotensão;

      reoperação;

      sepse;

      cirurgia combinada de revascularização e troca valvar.

 

Embora a circulação extracorpórea seja considerada um importante fator de lesão renal, a cirurgia sem CEC não provou ser superior em relação à diminuição da mortalidade, possivelmente pela maior taxa de revascularização incompleta com este procedimento.

 

Achados Clínicos

A maioria dos pacientes não apresenta sinais e sintomas ao diagnóstico, que é baseado quase sempre nos exames laboratoriais. Os sintomas decorrentes da uremia e hipervolemia ocorrem mais tardiamente e incluem: redução do volume urinário (pode não estar presente), anorexia, náusea, vômitos, confusão mental, prurido, atrito pericárdico e Asterix, sinais de hipervolemia com edema periférico, dispneia, estase jugular e estertores crepitantes em bases pulmonares.

 

Achados Laboratoriais

      Aumento de ureia e creatinina;

      acidose metabólica com ânion gap aumentado;

      hipercalemia;

      hiperfosfatemia;

      eletrocardiograma: onda T apiculada, redução da onda P, alargamento do QRS.

 

Tratamento

      Dieta: restrição proteica < 0,6 g/kg/dia nos pacientes que não estejam em diálise. Caso contrário, não é necessário restrição;

      balanço hídrico: monitorar peso diário, diurese e aporte hídrico;

      estabilização hemodinâmica: manter PAM > 70 mmHg, IC > 2,2 L/min/m2, correção de hipovolemia com SF 0,9%. Evitar uso de coloides;

      correção de hipervolemia: o uso de diuréticos está indicado para o tratamento da hipervolemia. Nesses casos, sugere-se a furosemida IV em bomba de infusão contínua 50 mg/h, solução não diluída;

      drogas nefrotóxicas: ajustar dose de antibióticos pela função renal. Evitar uso de IECA e anti-inflamatórios não hormonais;

      hemodiálise: a hemodiálise está indicada nos casos de acidose metabólica, hipercalemia, uremia e hipervolemia refratários. É importante ressaltar que não está isenta de efeitos adversos. Pode causar instabilidade hemodinâmica, hipoxemia, isquemia visceral e arritmias ventriculares. Além disso, altera a resposta imunológica aumentando o risco de infecções. Portanto, sua indicação deve ser criteriosa.

 

Sangramento no Pós-operatório

Sangramento e coagulopatia são eventos comuns no pós-operatório de cirurgia cardíaca, especialmente em procedimentos com uso de circulação extracorpórea. Os principais determinantes incluem:

 

      pré-operatório: cirurgia de urgência, uso de antiagregantes e anticoagulantes, uso crônico de corticoides, discrasias sanguíneas, hepatopatia, cirurgia prévia, idade avançada, insuficiência renal, infecção;

      intraoperatório: redução dos fatores de coagulação, fibrinólise, reversão inadequada da heparinização, uso excessivo da protamina, trombocitopenia, má técnica cirúrgica.

 

A melhor forma de monitorar o sangramento é a rigorosa observação do débito e do aspecto dos drenos mediastinais e pleurais nas primeiras horas após o ato cirúrgico, bem como o controle de hemoglobina, plaquetas e coagulograma seriados. Na chegada do paciente à UTI, devem ser obtidas informações sobre a hemostasia na sala de cirurgia, dose de heparina, protamina, antifibrinolíticos e hemoderivados. O intensivista deve ficar atento para o diagnóstico precoce, o manejo adequado dos hemoterápicos e a definição do melhor momento para indicar abordagem cirúrgica. Não há consenso em relação à definição de débito excessivo dos drenos. Normalmente não excede 500 mL nas primeiras 24 horas. Caso o débito exceda 150 mL/h, sugere-se a rotina adotada na UTI pós-operatória do InCor/HC-FMUSP:

 

      medidas gerais: manutenção da normotermia e equilíbrio metabólico;

      tratamento inicial do sangramento: protamina 25 a 50 mg IV diluída em 100 mL de soro fisiológico em 20 minutos (apenas para sangramento no máximo após 4 horas da última dose de heparina);

      se o sangramento for maior que 150 mL/h, deve-se proceder da seguinte maneira:

-      coleta de coagulograma e plaquetas;

-      avisar a equipe cirúrgica do paciente;

-      desmopressina: opção terapêutica para sangramentos associados à uremia ou à disfunção plaquetária – dose 0,3 mcg/kg diluído em 50 mL de salina infundido em 15 minutos;

-      coagulograma demonstrando TTPa ou TP prolongados: plasma fresco 2 a 4 unidades;

-      plaquetas < 100.000: transfusão de plaquetas 1 U/10 kg de peso;

      sangramento persistente após infusão de plasma: transfundir plaquetas 1 U/10 kg independentemente da contagem pela disfunção plaquetária;

      se o sangramento persiste após infusão de plasma e plaquetas: deve ser novamente avisada a equipe cirúrgica e realizados novo coagulograma, dosagem de fibrinogênio, produtos de degradação da fibrina, tempo de sangramento: se fibrinogênio < 100 mg/dL ou se TTPa persiste anormal apesar do plasma ou pacientes portadores de estenose aórtica: crioprecipitado 1 U/10 kg;

      suspeita de fibrinólise: fibrinogênio baixo associado a aumento dos níveis dos produtos de degradação da fibrina especialmente em reoperações: ácido épsilon-aminocaproico 25 mg/kg IV em 1 hora, seguido por uma dose de 1 a g/h por 4 a 5 horas;

      ordenha dos drenos: deve ser realizada de hora em hora e na suspeita de obstrução por coágulos.

 

Indicação de Abordagem Cirúrgica

      Taxas de sangramento de 200 mL/h de 4 a 6 horas;

      taxas de sangramento maior que 1.500 mL em 12 horas;

      súbito aumento no débito dos drenos (300 a 500 mL);

      suspeita clínica de tamponamento.

 

Infecções

O aparecimento de complicações infecciosas no pós-operatório de cirurgia cardíaca está associado a altas taxas de morbidade e mortalidade. Infecção profunda da ferida operatória é uma complicação séria e dispendiosa, com taxas de mortalidade que variam de 15 a 20%, a despeito de terapêutica apropriada.

A obesidade é o principal fator de risco para o surgimento de deiscência esternal, com ou sem infecção, e após qualquer tipo de cirurgia cardíaca. Diabetes, utilização das duas artérias torácicas internas e a presença de insuficiência renal são outros fatores de risco comuns para o surgimento de infecção.

 

Tipos Comuns de Infecções no Pós-operatório de Cirurgia Cardíaca

      Infecção da ferida operatória de retirada da veia safena;

      arterite relacionada à cateterização arterial;

      infecção da ferida esternal;

      mediastinite.

 

Achados Clínicos/Laboratoriais

      Febre ou hipotermia;

      hiperemia e/ou calor e/ou rubor na ferida;

      drenagem de secreção pela ferida;

      deiscência;

      taquicardia/taquipneia;

      instabilidade esternal;

      leucocitose/leucopenia;

      presença de coleções em exames de imagem.

 

A suspeita de presença de complicações infecciosas deve levar à rápida instituição de terapêutica apropriada. Culturas, tanto de material da ferida quanto sanguíneas, devem sempre ser colhidas. Guiar antibioticoterapia conforme resultado de culturas sempre que possível, ou de acordo com o perfil de organismos patogênicos da instituição, quando não for possível o isolamento do agente causador. Frequentemente, é necessário associar terapêutica cirúrgica (drenagem, desbridamento, ressecção esternal e/ou outros) para o adequado tratamento dessa grave intercorrência pós-operatória.

 

Disfunções Gastrintestinais

Morbidade abdominal ocorre em cerca de 0,2 a 5,5% dos pacientes em pós-operatório de cirurgia cardíaca, com uma taxa de mortalidade média de cerca de 33%, sendo responsáveis por aproximadamente 15% do total de óbitos dos pacientes de cirurgia cardíaca.

 

Tipos de Morbidade Abdominal

      Sangramento gastrointestinal – complicação mais comum;

      isquemia mesentérica;

      pancreatite;

      colecistite;

      íleo paralítico;

      úlcera péptica perfurada;

      insuficiência hepática;

      isquemia intestinal;

      infarto intestinal – complicação invariavelmente fatal em PO de cirurgia cardíaca.

 

Causas de Agressão aos Órgãos Abdominais durante Cirurgia Cardíaca

      Ateroembolismo;

      hipoperfusão causada por vasoconstricção durante circulação extracorpórea;

      instabilidade hemodinâmica no perioperatório, levando à baixo fluxo sanguíneo e isquemia da mucosa;

      liberação de mediadores inflamatórios durante a circulação extracorpórea, como os leucotrienos, fator de necrose tumoral e formação de plasmina, que levam a dano endotelial, das células da mucosa e da matriz extracelular.

 

Fatores de Risco para Ocorrência de Complicações Gastrointestinais

      Ventilação mecânica prolongada;

      idade avançada;

      fração de ejeção reduzida;

      suporte inotrópico ou mecânico no perioperatório;

      arritmias;

      transfusões;

      insuficiência renal;

      reoperação;

      cirurgia de emergência;

 

O diagnóstico precoce das complicações abdominais pode ser difícil, especialmente da isquemia intestinal, que é sugerida por níveis bastante elevados de lactato, acidose metabólica persistente, leucocitose e íleo. Na suspeita clínica, deve-se utilizar precocemente os recursos complementares disponíveis para o diagnóstico e o tratamento dessa afecção, como a colonoscopia, o lavado peritoneal, o estudo angiográfico intervencionista com dilatação ou infusão de papaverina e/ou a intervenção cirúrgica. O correto e rápido emprego desses recursos podem ser medidas possíveis para garantia da sobrevida.

 

Complicações Neurológicas

Acidente vascular cerebral é a mais grave e temida complicação neurológica no pós-operatório de cirurgia cardíaca. O desenvolvimento de AVC no pós-operatório da cirurgia de revascularização do miocárdio varia de 0,8 a 5% nos diferentes estudos. A maioria dos eventos ocorre nos primeiros dois dias após a cirurgia. É importante ressaltar que muitos desses eventos têm apresentação silenciosa, em decorrência de microembolização, contribuindo para a disfunção cognitiva em longo prazo. Entre os principais fatores de risco, destacam-se:

 

      história de doença cerebrovascular;

      doença arterial periférica;

      diabetes;

      hipertensão;

      reoperação;

      cirurgia de urgência;

      circulação extracorpórea prolongada;

      politransfusão;

      idade > 70 anos;

      doença ateromatosa em aorta ascendente;

      manipulação da aorta ascendente;

      fibrilação atrial pós-operatória;

      valvas metálicas.

 

O impacto das alterações neurológicas sobre a morbidade e a mortalidade dos pacientes submetidos à cirurgia cardíaca pode ser muito importante, já que essas alterações podem levar a estado de coma, sequelas permanentes e até mesmo óbito.

 

Complicações Endócrinas

Glicemia

A hiperglicemia é um fator de risco bem estabelecido para morbidade e mortalidade em pacientes no pós-operatório de cirurgia cardíaca. Ela provoca, direta ou indiretamente, disfunção endotelial, aumento da trombogênese, prejuízo na cicatrização, distúrbios hidroeletrolíticos, depressão do sistema imune, além de interferência negativa em outros sistemas como pulmonar, neurológico e renal.

O controle glicêmico estrito pode, além de diminuir as taxas de mortalidade, diminuir as taxas pós-operatórias de infecção, principalmente mediastinite. Esse efeito benéfico pode ser visto tanto em pacientes diabéticos, como em não diabéticos que apresentem níveis glicêmicos alterados no pós-operatório. Esse controle também está associado à presença de uma melhor função contrátil do miocárdio, com menor necessidade de uso de drogas inotrópicas no pós-operatório e a menores níveis de lactato.

Entretanto, a ocorrência de episódios de hipoglicemia, comuns aos diversos protocolos de controle glicêmico disponíveis, além dos efeitos colaterais do uso de altas doses de insulina, podem contrabalancear os efeitos positivos dessa terapêutica, devendo ser prevenidos. O nível ótimo de glicemia a ser atingido ainda não é estabelecido.

A Tabela 11 mostra protocolo de controle glicêmico da UTI pós-operatória do InCor/HC-FMUSP:

 

Tabela 11: Nomograma para controle glicêmico no intra e no pós-operatório – Tratamento instituído após primeira glicemia

Glicemia (mg/dL)

Bolus (UI)

Infusão (UI/h)

50 a 110

0

0

111 a 130

0

0,5

131 a 150

0

1

151 a 200

0

1,5

201 a 250

2

2

251 a 300

3

3

301 a 350

4

4

351 ou mais

5

5

 

Tabela 12: Ajuste de insulinoterapia conforme medidas glicêmicas subsequentes

Glicemia (mg/dL)

Medida a ser adotada

Menor que 50

Parar infusão e fazer G 50% 20 mL

50 a 70

Parar a infusão

71 a 80

Reduzir a infusão à metade

81 a 110

Manter velocidade de infusão

111 a 130

? 0,5 UI/h

131 a 150

? 1 UI/h

151 a 200

? 1,5 UI/h

201 a 250

Novo bolus de 2 UI e ? 2 UI/h

251 a 300

Novo bolus de 3 UI e ? 3 UI/h

301 a 350

Novo bolus de 4 UI e ? 4 UI/h

351 ou mais

Novo bolus de 5 UI e ? 5 UI/h

Quando a glicemia for 111 mg/dL ou mais, porém, tiver apresentado queda de 20 mg/dL ou mais em relação à última medição, deve-se manter a velocidade de infusão.

 

Insuficiência Adrenal

Complicação presente em até 0,1% dos pacientes submetidos à cirurgia cardíaca e que pode ser exacerbada pela circulação extracorpórea. Pacientes usuários crônicos de corticoterapia devem receber reposição de dose de estresse para evitar crise adrenal; como a cirurgia cardíaca é considerada um estresse grave, deve-se repor hidrocortisona 50 mg IV a cada 6 horas.

Em caso de suspeita clínica, a coleta de exames laboratoriais (teste do ACTH e coleta do cortisol) não deve retardar o início do tratamento, que deve ser imediato.

 

Disfunção Tireoidiana

Os níveis séricos de T3 livre no pós-operatório de cirurgia cardíaca estão frequentemente reduzidos. A despeito de seus efeitos benéficos sobre o débito cardíaco e sobre a resistência vascular sistêmica, não há, na literatura, até o presente momento, dados convincentes de que a reposição desse hormônio traga benefícios. Parece que a reposição de T3 no pós-operatório de pacientes com função tireoidiana normal no pré-operatório deva ser reservada para os casos de baixo débito refratário.

Para pacientes que recebiam hormônio tireoidiano no pré-operatório, deve-se reiniciar sua reposição, o mais precocemente possível, no pós-operatório.

 

TÓPICOS IMPORTANTES

      A cirurgia cardíaca, a despeito de todo avanço científico incorporado pela medicina nas últimas décadas, continua a ser uma modalidade terapêutica com grandes repercussões na homeostase dos diversos sistemas do corpo humano. Sem dúvida, os cuidados médicos apropriados no pós-operatório sobre os mais diversos sistemas constituem parte fundamental para a boa evolução clínica dos doentes.

      É importante lembrar que, mesmo com todo arsenal diagnóstico complementar disponível atualmente, a anamnese e o exame físico permanecem como as principais ferramentas para o precoce e correto diagnóstico das principais complicações. Não se deve atrasar o tratamento de uma possível complicação, suspeitada clinicamente, para aguardar a realização de um exame complementar.

      A participação da equipe multidisciplinar de saúde, com enfermeiros, técnicos, fisioterapeutas, psicólogos e nutricionistas, são indissociáveis dos cuidados médicos, tendo inclusive, relevância estatística para redução de morbimortalidade.

 

BIBLIOGRAFIA

1.    Nicolau JC et al. Condutas práticas em cardiologia. 2010.

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13. Chertow GM, Levy EM, Hammermeister KE, Grover F, Daley J. Independent association between acute renal failure and mortality following cardiac surgery. Am J Med. 1998; 104:343-8.

Comentários

Por: Fernando EmidioVargas em 23/06/2012 às 20:28:19

"Maiores detalhes sobre uso de antibióticos no pôs operatório de cirurgia cardiaca"

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