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Fibrose Cística

Autor:

Eduardo de Aguiar Ferone

Pneumologista pediátrico.

Última revisão: 08/12/2010

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INTRODUÇÃO

A fibrose cística (FC) é uma doença que afeta as glândulas exócrinas de múltiplos órgãos e apresenta um caráter crônico e progressivo de evolução. Até poucos anos, a maioria dos pacientes diagnosticados com FC falecia nos primeiros anos de vida, mas com o diagnóstico precoce e as novas técnicas de tratamento multidisciplinar, até 50% dos pacientes podem sobreviver mais de 30 anos. Trata-se da doença hereditária potencialmente letal mais comum na etnia branca. Sua incidência varia conforme a etnia e, no Brasil, está estimada em 1 para cada 9.500 nascidos vivos, de acordo com dados obtidos nos estados em que o programa de triagem neonatal para FC foi inicialmente implantado. Nos EUA e na Europa, a incidência é maior, variando de 1 para cada 3.000 a 5.000 nascidos vivos, e sendo menos frequente nas etnias negra (1:15.000) e oriental (1:90.000).

 

FISIOPATOGENIA

A FC é uma doença genética autossômica recessiva e o gene em questão encontra-se no braço longo do cromossomo 7. Esse gene é responsável pela produção de uma proteína transmembrana chamada CFTR (Cystic Fibrosis Transmembrane Conductance Regulator), que se localiza na membrana apical das células e está envolvida no transporte de cloro, sódio e água. Até o presente momento, já foram descritas mais de mil mutações desse gene, que podem acarretar desde alterações parciais até ausência completa no funcionamento da CFTR. A mutação mais comum é a deleção de três pares de bases, o que leva à perda de um aminoácido de fenilalanina na posição 508 da CFTR, a mutação chamada ?F508.

De um modo bastante simplificado, quando existe uma alteração no funcionamento da proteína transmembrana CFTR, a saída de cloro da célula fica prejudicada, aumentando a eletronegatividade intracelular. Para manter o equilíbrio eletroquímico, ocorre um aumento no influxo de sódio, que acaba trazendo consigo a água, por ação osmótica. Esse processo acarreta desidratação das secreções mucosas e aumento da viscosidade das secreções produzidas nos dutos das glândulas, causando uma tubulopatia obstrutiva com reação inflamatória e posterior fibrose nos órgãos acometidos.

 

MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS

As manifestações clínicas da FC podem se expressar de modos distintos nos pacientes, refletindo provavelmente o grande número de mutações genéticas possíveis. Além disso, podem se apresentar precocemente, como no período neonatal, ou somente na idade adulta. O princípio das lesões nos diferentes órgãos é o mesmo, e a expressão desse processo será descrita a seguir.

 

Aparelho Respiratório

As manifestações respiratórias são responsáveis pela suspeita diagnóstica em até 50% dos casos. Por outro lado, são consideradas como causa de morte dos pacientes em até 90% deles. Os sinais e sintomas podem não ocorrer até meses ou anos após o nascimento, mas apresentam uma evolução caracterizada por comprometimento progressivo.

A sequência dos eventos que representa o envolvimento do sistema respiratório pode ser representada conforme mostra a Figura 1.

 

Figura 1.

 

Defeito Genético

Nas vias aéreas superiores, a pansinusite crônica está presente em quase todos os pacientes e é universal. Além disso, muitos apresentam polipose nasal recidivante, que pode ser a primeira manifestação da doença em alguns pacientes. A otite média crônica ou recorrente e a anosmia são outros exemplos de manifestações bastante comuns.

Já nas vias aéreas inferiores, a tosse é o principal sintoma e pode estar presente desde as primeiras semanas de vida, comprometendo o sono e a alimentação dos pequenos lactentes. No início, apresenta-se com caráter de tosse seca, com paroxismos que chegam a provocar vômitos. Com o tempo, torna-se produtiva, com eliminação de grandes quantidades de secreção respiratória. As manifestações mais iniciais do comprometimento das vias aéreas inferiores são a hipertrofia e a dilatação das glândulas submucosas. Ocorre a formação de rolhas de muco, incialmente nas vias aéreas de menor calibre, com ciclos repetidos de obstrução e infecção. O processo inflamatório persistente e recorrente promove a formação de bronquioloectasias que caminham para grandes bronquiectasias. O paciente apresenta pneumonias de repetição, que podem se tornar hemorrágicas mais tardiamente, por conta da ruptura de frágeis vasos neoformados em regime de hipóxia próximo às bronquiectasias. Toda essa alteração estrutural contribui para que o paciente se comporte como um doente pulmonar obstrutivo crônico (DPOC), que caminhará invariavelmente para a falência respiratória.

A colonização bacteriana crônica dos pacientes com FC, em geral, segue a mesma sequência. Inicialmente verifica-se a colonização por S. aureus e H. influenzae, que pode ser verificada mesmo antes dos primeiros sintomas. Em seguida, tem-se a Pseudomonas aeruginosa e, depois, sua cepa mucoide, esta, por sua vez, muito difícil de ser erradicada. A infecção pela Burkholderia cepacia pode se manifestar por meio de uma aceleração no declínio da função pulmonar ou de um quadro clínico fulminante. Em alguns centros especializados de tratamento, a infecção pela B. cepacia é considerada contraindicação ao transplante pulmonar em fibrocísticos.

Ao exame físico, pode-se observar aumento do diâmetro anteroposterior do tórax, pelo aprisionamento aéreo típico de uma DPOC, e baqueteamento digital com unhas em “vidro de relógio”, decorrentes da pneumopatia crônica e presentes em quase todos os pacientes sintomáticos com mais de 4 anos de idade.

 

Aparelho Digestivo

As manifestações digestivas da FC decorrem, em sua maioria, da insuficiência pancreática, porém, ela pode não estar presente em alguns pacientes e, nesses casos, o prognóstico é melhor, uma vez que eles conseguem manter o seu estado nutricional. Entretanto, na maioria dos pacientes, a insuficiência pancreática está presente e acomete 75% dos recém-nascidos, 80% das crianças até o final do 1º ano de vida e 90% dos adultos.

Os tampões mucosos formados nos canalículos pancreáticos, decorrentes da secreção espessa aí produzida, impedem a liberação do suco digestivo e suas enzimas de maneira adequada para o duodeno. Desse modo, ficam prejudicadas a digestão e a absorção de gorduras, proteínas e hidratos de carbono, acarretando a característica esteatorreia da FC, com eliminação de fezes volumosas, oleosas, muito fétidas e várias vezes ao dia.

No período neonatal, pode ocorrer o íleo meconial, que é a obstrução do íleo terminal por mecônio espesso com distensão abdominal e vômitos biliares nas primeiras 24 a 48 horas de vida. Essa manifestação acomete até 20% dos fibrocísticos, mas, por outro lado, a observação de íleo meconial em recém-nascido de termo é relativa à FC em até 90% dos casos e, por isso, os pacientes devem ser tratados como fibrocísticos, até que se prove o contrário.

O edema hipoproteinêmico é outra manifestação característica do período neonatal e pode ser observada em até 5% dos casos.

Em adolescentes e adultos, a síndrome da obstrução intestinal distal é o equivalente ao íleo meconial nessas faixas etárias.

O prolapso retal pode ocorrer em até 20% dos pacientes, especialmente nos menores de 2 anos de idade, e se deve à combinação de algumas condições, como: presença de fezes muito viscosas aderidas à mucosa retal, perda da gordura perirretal que promove sustentação ao órgão e aumento da pressão intra-abdominal pela tosse crônica.

 

Aparelho Hepatobiliar

No aparelho hepatobiliar, mais uma vez ocorre obstrução dos pequenos dutos por secreção biliar espessa seguida de reação inflamatória que pode caminhar para fibrose periportal. Segundo dados de literatura, até 50% das necropsias de pacientes com FC apresentam alterações hepatobiliares. Por isso, é muito importante atentar para as manifestações clínicas do comprometimento hepático, dentre elas: ascite, edema periférico, dilatação de veias abdominais, aumento de enzimas canaliculares hepáticas e litíase biliar.

 

MANIFESTAÇÕES NUTRICIONAIS

Em virtude do comprometimento do sistema digestivo e hepatobiliar, não é difícil compreender porque os pacientes com FC têm elevado risco de desnutrição proteico-calórica. A desnutrição nesse caso resulta da soma de dois fatores: aumento do gasto energético basal decorrente do processo inflamatório crônico e infecções recorrentes, com obstrução progressiva das vias aéreas e aumento do trabalho respiratório, aliados à má absorção dos nutrientes e de vitaminas lipossolúveis.

O risco de desidratação e distúrbios eletrolíticos também é alto, especialmente em situações de exposição a calor excessivo ou durante processos que levem a vômitos ou diarreia. Isso se deve às perdas exageradas de sais pelo suor. Sabe-se que as glândulas sudoríparas estão presentes em quase toda superfície corpórea (exceto mamilos, lábios e genitais externos) e são capazes de produzir alguns litros de suor em determinadas situações. Nos pacientes com FC, esse processo é amplificado pelo distúrbio genético primário da própria doença e é muito frequente a descrição da formação de cristais de sal na pele ou a sensação de “beijo salgado” relatada pelos pais das crianças com FC ao beijarem seus filhos.

 

MANIFESTAÇÕES NO APARELHO REPRODUTOR

O atraso puberal é bastante comum e se deve ao comprometimento nutricional e aos próprios efeitos de uma doença crônica. No entanto, nos pacientes que mantêm estado nutricional satisfatório, pode nem estar presente. A esterilidade masculina é observada em até 98% dos casos, em razão da obstrução dos canais deferentes com azoospermia obstrutiva. Nas mulheres, a esterilidade pode atingir até 30% das pacientes, pelo aumento na viscosidade do muco vaginal.

 

DIAGNÓSTICO

Atualmente, o estabelecimento do diagnóstico de FC se baseia em critérios propostos pelo consenso da Cyistic Fibrosis Foundation, de 1998, conforme mostra a Tabela 1.

 

Tabela 1.

Coluna A

Coluna B

Características fenotípicas

Doença sinusal ou pulmonar crônica

Alterações gastrintestinais ou nutricionais

Síndrome de perda salina

Anormalidades urogenitais com azoospermia obstrutiva OU

Cloro no suor > 60 mmol/L em 2 dosagens independentes OU

História de irmão com FC OU

Identificação de 2 mutações FC OU

Teste de triagem neonatal positivo

Alteração no transporte iônico no epitélio nasal

 

Segundo esse consenso, para fechar o diagnóstico de FC, os pacientes devem apresentar pelo menos um dos itens da coluna A e um item da coluna B. Observe que a avaliação do transporte iônico no epitélio nasal, um dos itens da coluna B, é um exame mais sofisticado, caro e ainda pouco comum em nosso meio.

Em países desenvolvidos, a maioria dos pacientes é diagnosticada antes dos 2 anos de idade. No Brasil, cerca de 50% dos pacientes só são diagnosticados após os 3 anos de idade.

 

Triagem Neonatal

A triagem neonatal para FC já é realizada rotineiramente em alguns estados brasileiros, junto com o “teste do pezinho”. O objetivo principal é buscar o diagnóstico precoce que permita instituir tratamento adequado. Este é um ponto muito relevante, uma vez que pacientes diagnosticados pelo teste de triagem neonatal apresentam melhor estado nutricional e melhores valores de função pulmonar aos 10 anos de idade, conforme já comprovado por estudos científicos.

O teste realizado em nosso meio é a dosagem de tripsinogênio no sangue. O tripsinogênio é uma enzima precursora da tripsina, que reflui para o sangue por causa da obstrução dos dutos pancreáticos nos pacientes com FC e, nestes casos, os níveis verificados chegam a ser 2 a 5 vezes maiores que o limite superior de normalidade. No Brasil, são coletadas 2 amostras: uma na 1ª semana de vida (com o “teste do pezinho”), e outra apenas se a primeira estiver alterada, devendo ser colhida antes do término do 1º mês de vida para evitar resultados falso-negativos, em virtude da queda habitual dos níveis de tripsinogênio no sangue. Pacientes que apresentem as duas amostras positivas devem ser submetidos ao teste do suor para confirmação do diagnóstico.

Por se tratar de um teste de triagem, são muito comuns resultados falso-positivos e negativos. Além disso, pacientes com FC e suficiência pancreática podem apresentar resultado negativo no teste de triagem, o que poderia retardar o diagnóstico.

 

Teste do Suor

O teste do suor é um exame não invasivo, de baixo custo e que apresenta elevada sensibilidade e especificidade acima de 95% para o diagnóstico de FC. Apesar dos avanços nas técnicas de diagnóstico genético, o teste do suor continua sendo o padrão-ouro para o diagnóstico de FC, justamente porque o grande número de mutações possíveis limita a confirmação genética, já que os kits laboratoriais disponíveis no mercado não testam todas as mutações descritas e ainda são bastante caros.

O teste do suor aceitável atualmente é a dosagem quantitativa de cloretos no suor coletados pela técnica da iontoforese por pilocarpina. Essa técnica foi padronizada por Gibson e Cooke em 1959, e continua sendo assim realizada até os dias atuais. A massa mínima de suor deve ser de 50 a 75 mg. O paciente deve estar clinicamente estável durante o teste, hidratado, sem doença aguda e sem uso de medicações mineralocorticoides que podem alterar o resultado do teste, dentre outras condições (dermatite atópica, hipogamaglobulinemia, glicogenose tipo I etc.).

Mais uma vez, vale lembrar que, para confirmar o diagnóstico, são necessárias duas amostras independentes de suor com valores de cloro acima do normal. Os valores de referência para esse teste quantitativo, ou teste clássico, podem ser verificados na Tabela 2.

 

Tabela 2. Valores de referência do cloro no suor no teste clássico

Normal : menor de 40 mmol/L

Limítrofe: entre 40 e 60 mmol/L

Positivo: maior de 60 mmol/L

 

Em lactentes com menos de 3 meses de vida, valor acima de 40 mmol/L deve ser considerado como resultado positivo. Em recém-nascido, valor acima de 30 mmol/L deve ser valorizado. Isto se deve ao fato de os níveis de eletrólitos no suor aumentarem normalmente com a idade, tanto que é bastante possível observar valores de cloro no suor acima de 60 mmol/L em alguns adultos saudáveis, sem qualquer repercussão clínica.

Além do teste clássico, existem testes alternativos para análise do suor, como a coleta por macroduto e a avaliação do suor pela condutividade. Entretanto, até o momento, estes são considerados métodos de triagem apenas e, por isso, pacientes que apresentem resultados positivos nestes testes devem ser submetidos ao teste clássico, quantitativo, para confirmação do diagnóstico.

 

TRATAMENTO

Os detalhes do tratamento extrapolam os objetivos desta revisão, cujo objetivo é chamar a atenção para as manifestações clínicas e explicar o método diagnóstico para FC. De modo geral, o tratamento é voltado para a profilaxia de infecções e complicações, uma vez que ainda não existe um tratamento específico nem a cura para a doença. O tratamento de suporte deve ser acompanhado por equipe multidisciplinar e realizado em centros especializados de referência. O início do tratamento depende do diagnóstico precoce, uma medida capaz de retardar a progressão das lesões pulmonares, melhorando o prognóstico dos pacientes e aumentando a sua sobrevida.

 

BIBLIOGRAFIA

1.    Damaceno N. fibrose cística. Pediatria Moderna 2004; volXL-N1/2.

2.    Ratjen F, Döring G. Cystic fibrosis. Lancet 2003; 361(9358):681-9.

3.    Ribeiro JD, Ribeiro MAGO, Ribeiro AF. Controvérsias na fibrose cística – do pediatra ao especialista. J Pediatr (Rio J) 2002; 78(Supl.2):S171-S186.

4.    Schvartsman BGS, Maluf Jr. PT (eds.). fibrose cística. In: Pediatria – Doenças Respiratórias. Barueri: Manole, 2008.

5.    Schvartsman BGS, Maluf Jr. PT (eds.). Teste do suor e da sacarina. In: Pediatria – Doenças Respiratórias. Barueri: Manole, 2008.

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