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Hipertermia maligna e síndrome neuroléptica maligna

Autor:

Rodrigo Antonio Brandão Neto

Médico Assistente da Disciplina de Emergências Clínicas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP

Última revisão: 05/11/2013

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Especialidades: Emergências, Terapia Intensiva, Neurologia, Anestesiologia

 

Hipertermia maligna

Síndrome hereditária caracterizada por rigidez muscular, aumento de temperatura e acidose metabólica. É relacionada à exposição a anestésicos inalatórios e relaxantes musculares despolarizantes. A síndrome tem alta mortalidade se não for reconhecida precocemente (80 a 90%), mas apresenta bom prognóstico se tratada precocemente, com mortalidade de 5%.

Sua ocorrência é de aproximadamente 1 episódio a cada 14.000 anestesias em crianças e 1 episódio a cada 50.000 anestesias em adultos, mas é difícil saber exatamente sua incidência, por conta da não identificação de casos leves.

 

Etiologia e fisiopatologia

Os pacientes suscetíveis apresentam alterações genéticas dos receptores de músculos esqueléticos, sendo que, em 40 a 50% dos casos, a herança é autossômica dominante, embora haja casos resultantes de herança recessiva ou multifatorial. Os agentes desencadeantes agem no retículo sarcoplasmático, aumentando a concentração de cálcio no mioplasma e levando à contração muscular mantida. A ligação do cálcio com a troponina estimula a fosforilase com aumento da glicólise, formando ácido lático e calor. A produção aumentada de ácido lático leva à acidose metabólica característica da síndrome. A lesão muscular pode ainda levar a rabdomiólise e disfunção renal.

 

Manifestações clínicas

Todos os anestésicos inalatórios, exceto o óxido nítrico, podem causar a síndrome. Em geral, ela ocorre 1 hora após a exposição, mas também há casos de agravamento da síndrome com o uso da succinilcolina.

As manifestações podem apresentar diferenças individuais, mas os pacientes geralmente apresentam hipercapnia, taquicardia sinusal e rigidez muscular, em particular de masseter. Essa rigidez muscular, apesar de característica, não é o sinal mais consistente e costuma ter aparecimento tardio, com até 30% dos pacientes sem apresentar rigidez muscular. As manifestações podem ser leves, mas em até 10% dos casos podem ser fulminantes.

A síndrome é caracterizada por um estado hipermetabólico, com aumento do consumo de O2 e produção de gás carbônico, de modo que o aumento da PaCO2 é um dos sinais a serem observados nesses casos. Monitoração durante a cirurgia da EtCO2, com o aparecimento de um aumento inexplicado, é o sinal mais sensível e específico. São descritas ainda arritmias ventriculares, por vezes polimórficas.

Arritmias ventriculares multifocais podem ocorrer por hipercalemia ou pelo próprio hipermetabolismo, e também são descritas arritmias supraventriculares. A hipertermia, por sua vez, é o resultado das alterações metabólicas e tende a ser tardia. A temperatura máxima é variável, mas pode chegar a 45 °C.

 

Alterações laboratoriais

A acidose metabólica é uma das alterações esperadas, devido ao aumento da produção de ácido lático. Acidose respiratória pelo aumento da PaCO2 também ocorre, resultando em uma acidose mista. Os pacientes podem apresentar hipoxemia de início abrupto. Inicialmente pela descarga adrenérgica e deslocamento do potássio, ocorre hipercalemia, podendo aparecer as alterações eletrocardiográficas típicas e arritmias. Posteriormente, os pacientes evoluem com hipocalemia, por perda do potássio corporal. A hiperfosfatemia é esperada pela destruição celular.

A lesão muscular aumenta CPK e mioglobina, podendo levar a mioglobinúria Os pacientes podem evoluir com rabdomiólise e disfunção renal aguda. Eles também podem apresentar coagulação intravascular disseminada e evoluir para óbito devido a arritmias, distúrbios hidreletrolíticos, hipóxia ou disfunção cardíaca.

 

Diagnóstico diferencial

Ao suspeitar do diagnóstico, deve se prestar atenção aos antecedentes familiares, sobretudo se houver antecedente de morte durante anestesia em familiar previamente hígido. São circunstâncias que tornam o diagnóstico suspeito:

 

      rigidez muscular durante anestesia;

      febre alta e esfriamento com gelo durante anestesia;

      urina escura no pós-operatório;

      dor e fraqueza muscular durante dias a semanas no pós-operatório.

 

O diagnóstico diferencial inclui outras causas de estados hipertérmicos, como bacteremia ou outras infecções, neoplasia, embolia gordurosa, hipertermia secundária a drogas e reações distônicas agudas. O uso de opioides, em particular o fentanil, está associado com quadro de rigidez muscular que pode ser confundido com hipertermia maligna.

Outros diagnósticos diferenciais incluem convulsões, encefalopatia hepática, trauma craniencefálico e outros estados hipermetabólicos, como tempestade tireoidiana, crise de feocromocitoma, síndrome neuroléptica maligna e aquecimento pós-circulação extracorpórea.

Algumas doenças são associadas com maior chance do desenvolvimento de hipertermia maligna:

 

      doença do núcleo muscular: miopatia que evolui com quadro estável ou lentamente progressivo, com diagnóstico realizado em geral na infância e caracterizada por hipotonia em lactentes e fraqueza muscular proximal;

      síndrome de King: doença rara, trata-se de uma miopatia congênita, associada a anomalias faciais e hipertermia maligna. Os pacientes podem ter baixa estatura, criptorquidia, pectus carinatum, cifose torácica e lordose lombar;

      deficiência da carnitina-palmitil-transferase: doença autossômica recessiva, caracterizada por episódios de rabdomiólise, mialgias e mioglobinúria. Os episódios são desencadeados por jejum ou exercícios físicos;

      distrofia muscular de Duchene: caracterizada por atrofia muscular progressiva que também envolve coração e musculatura lisa.

 

Pode-se verificar o risco de desenvolver hipertermia maligna durante cirurgia com o chamado teste de suscetibilidade ou teste de contração muscular. Nesse teste, utiliza-se cafeína e halotano para verificar se ocorre contração muscular. São indicações da realização do teste:

 

      suspeita de hipertermia maligna;

      parentes de pacientes com hipertermia maligna;

      aumento de CPK persistente com exame neurológico normal;

      história familiar de cãibras inexplicadas.

 

Tratamento

Em pacientes que apresentam rigidez muscular, arritmias, taquipneia, febre e instabilidade pressórica durante cirurgia, deve-se interromper o uso do anestésico, iniciar hiperventilação a 100% até que se tenha dantroleno disponível. Em suspeita de acidose, colher rapidamente gasometria ou infundir bicarbonato. O tratamento específico é realizado com dantroleno, que é um derivado da hidantoína e pode melhorar a espasticidade muscular. É a droga de escolha, pois impede a contração muscular dependente de cálcio. É realizado um bolus de 2 a 3 mg/kg, EV, seguido de 1 mg/kg conforme a necessidade, com dose de até 10 mg/kg, embora alguns pacientes possam necessitar de doses maiores que 20 mg/kg. O objetivo é controlar parâmetros como ETCO, temperatura, frequência cardíaca e rigidez muscular. A medicação interage com bloqueadores dos canais de cálcio, como o verapamil, causando hipercalemia, sendo o uso do verapamil uma contraindicação ao uso do dantroleno.

Na anestesia em caso de suspeita de hipertermia maligna, é importante também descontinuar o uso de agentes inalatórios, sendo os mais comuns o halotano, o enflurano e o isoflurano.

É importante tentar controlar a hipercapnia, se necessário com aumento da ventilação por minuto, e observar se existem outros motivos para o aumento da ETCO, como obstrução de circuito do ventilador mecânico, entre outras condições

Em pacientes com altas temperaturas, pode ser necessário realizar medidas para esfriamento, como aplicação de gelo em regiões de alto fluxo sanguíneo, como pescoço, axilas e região inguinal. Pode-se ainda tentar a irrigação da cavidade cirúrgica com soluções geladas ou infusões intravenosas de líquidos gelados e, eventualmente, lavagem retal e gástrica com soro gelado. A hipercalemia, se presente, também deve ser tratada agressivamente.

Em pacientes com acidose, pode ser necessário o uso de bicarbonato de sódio. Durante as primeiras 48 horas de tratamento, deve-se monitorar CPK, mioglobina, mioglobinúria, gasometria arterial e eletrólitos. Em caso de acidose, deve-se administrar bicarbonato. Caso ocorram arritmias, estas devem ser tratadas conforme os protocolos habituais.

A conduta no paciente com suscetibilidade aumentada a hipertermia maligna é controversa. Não se sabe ao certo se o uso profilático do dantroleno é adequado. Deve-se escolher agentes anestésicos que impliquem menor risco da síndrome, sendo a anestesia venosa total uma opção.

 

Síndrome neuroléptica maligna

Síndrome descrita em pacientes psquiátricos em uso de agentes neurolépticos, caracterizada por um complexo de rigidez extrapiramidal, hipertermia, alteração de nível de consciência e aumento de enzimas musculares que ocorre como reação aguda ou subaguda do uso de neurolépticos. Os primeiros relatos da síndrome citavam mortalidade acima de 70%, mas recentemente esta mortalidade diminuiu para valores entre 10 e 20%. Sua incidência aproximada é de 0,02 a 0,03% dos pacientes em uso de neurolépticos. Todos os neurolépticos podem estar associados com o aparecimento da síndrome, além de drogas com ação antiemética, como a metoclorpramida e a prometazina.

O estado do paciente simula a catatonia com sinais extrapiramidais, alterações de PA, disartria, disafagia, instabilidade cardiovascular, febre, diaforese, congestão pulmonar e pode resultar em estupor e coma.

 

Etiologia e fisiopatologia

A causa da síndrome é desconhecida. As teorias mais aceitas para justificar o seu aparecimento se relacionam ao bloqueio de receptores dopaminérgicos. Essa teoria se baseia nos fatores causais que levam ou precipitam seu aparecimento. O bloqueio dos receptores dopaminérgicos centrais no hipotálamo podem causar hipertermia e outros sinais de disautonomia; já a interferência com as vias nigroestriatais pode levar a sintomas parkinsonianos. Outros sistemas de neurotransmissores, como GABA, serotonina, adrenalina e acetilcolina, também parecem envolvidos direta ou indiretamente. Outra teoria justifica a rigidez muscular e o aumento de enzimas musculares associados à síndrome como efeitos diretos da ação dos neurolépticos no sistema musculoesquelético.

Múltiplos fatores estão associados com o aparecimento da síndrome e eles incluem dosagem inadequada de medicações, doenças associadas, ferro sérico diminuído e desidratação. O uso do lítio aumenta a vulnerabilidade dos pacientes ao aparecimento da síndrome.

É frequente a concomitância de lesão orgânica de sistema nervoso central, que leva a desregulação do metabolismo dopaminérgico levando a hipermetabolismo e suas consequências.

 

Manifestações clínicas e laboratoriais

Na maioria dos casos, os sintomas ocorrem após 2 semanas de uso das medicações antipsicóticas, podendo ocorrer com pequenas doses das medicações.

A tétrade de sintomas da síndrome é constituída por febre, rigidez, alterações do estado mental e instabilidade autonômica. Cada um desses sintomas ocorre em 97 a 100% dos pacientes.

Alteração do estado mental é o sintoma inicial em 82% dos casos. Os pacientes podem apresentar estupor e coma. A rigidez muscular é generalizada e, muitas vezes, extrema. Temores e rigidez muscular em “roda dentada” ocorrem em mais de 60% dos casos. Os pacientes também podem ter sialorreia proeminente, disartria e disfagia.

A hipertermia é um importante sintoma associado, com temperaturas acima de 38 °C em quase 90% dos casos, e superiores a 40 °C em cerca de 40% dos casos.

Os sintomas de instabilidade autonômica incluem taquicardia (88%), pressão arterial elevada ou lábil (61 a 77%) e taquipneia (73%) e eventualmente arritmias.

Aumento da CPK e leucocitose com desvio à esquerda ocorre em 50% dos casos. A CPK é tipicamente acima de 1.000 UI/L e pode ser tão elevada como 100.000 UI/L. Níveis superiores a 1.000 IU/L são mais específicas para o diagnóstico. Podem ocorrer ainda elevações de lactato desidrogenase, fosfatase alcalina e transaminases. Alterações hidreletrolíticas como hipocalcemia, hipomagnesemia, hiponatremia e hipernatremia também ocorrem, sendo a hipercalemia e a acidose metabólica as mais comuns.

A lesão muscular pode levar a rabdomiólise com disfunção renal; neste caso, espera-se a presença de mioglobinúria.

Alguns pacientes podem apresentar manifestações atípicas, com sintomas de rigidez muscular leves ou até ausentes. A febre é parte das manifestações obrigatórias, mas existem relatos de sua ausência; assim, em pacientes em uso de neurolépticos com manifestações de alteração de consciência, o diagnóstico deve ser considerado, mesmo se nem todas as manifestações estiverem presentes.

O diagnóstico da condição é difícil, pois não existe um marcador específico da doença. Já foram propostos escores para a síndrome que levam em consideração as manifestações de exposição a droga, temperatura maior que 38 °C, rigidez muscular, alteração do estado mental, elevação de pelo menos 4 vezes dos valores normais de CPK, alterações de pressão arterial e frequência cardíaca e exclusão de outros diagnósticos. A aplicabilidade prática deste escore é questionável.

 

Diagnóstico diferencial

A hipertermia maligna e a síndrome serotoninérgica são diagnósticos diferenciais importantes, pois ambas têm manifestações clínicas semelhantes, mas com fatores precipitantes diferentes.

A catatonia maligna herbefrênica é outro diagnóstico diferencial. Neste caso, sintomas motores como distonia e movimentos estereotipados são mais frequentes, mas a diferenciação pode ser difícil.

Intoxicação por drogas e síndrome anticolinérgica central também devem ser consideradas como diferenciais.

Infecções do sistema nervoso central, como meningites ou encefalites, tétano e tempestade tireoidiana são outros diagnósticos diferenciais.

 

Tratamento

Em primeiro lugar, é necessário descontinuar o agente causador outros agentes psicotrópicos que podem influenciar o aparecimento da síndrome. O tratamento de suporte com controle da febre e reposição volêmica também tem grande importância. Em particular nos pacientes com rabdomiólise, as necessidades volêmicas podem exceder 4 L/dia para manter a função renal. Deve-se atentar para a possibilidade de ocorrência de distúrbios hidreletrolíticos e se tratar todas as complicações possíveis, como taquiarritmias. Estes pacientes também apresentam risco aumentado de eventos tromboembólicos e, assim, a profilaxia é indicada.

A terapia médica específica tem como uma de suas opções o uso de dantroleno, que é um relaxante muscular de ação direta e já testado no tratamento da hipertermia maligna. A dose usual é de 50 mg EV conforme a necessidade, sendo que a dose máxima é de 10 mg/kg/dia.

Outra opção para o tratamento é o uso da bromocriptina, que tem a vantagem teórica de bloquear receptores dopaminérgicos no sistema nervoso central. A dose usual é de 2,5 a 10 mg 3 vezes/dia, podendo ser utilizada dose máxima de 40 mg/dia, sendo 10 mg a cada 6 horas. O seu uso é recomendado por 10 dias e após o controle, indica-se redução gradual da medicação. Ainda é descrito com sucesso o uso da amantadina em dose de 100 a 200 mg 2 vezes/dia. Outras medicações, como levodopa, têm relatos isolados na literatura. Dm fato, a evidência do benefício da terapia específica para a síndrome é escassa.

Outra opção descrita é a eletroconvulsoterapia, mas não existem estudos randomizados descrevendo seu benefício. Há ainda a preocupação quanto à segurança do procedimento, considerando a necessidade de anestesia e o risco de se unir a síndrome com hipertermia maligna. Portanto, seu uso deve ser considerado apenas em pacientes sem resposta À terapia médica por mais de 1 semana.

Deve-se esperar pelo menos 2 semanas antes de se reiniciar a terapia com neurolépticos. Neste caso, é interessante usar agentes de potência mais baixa e titular a dose lentamente. A clozapina parece ser uma medicação mais segura nestes pacientes. Ainda é interessante evitar o uso concomitante de lítio e evitar desidratação nestes pacientes.

 

Bibliografia recomendada

1.    Denborough M. Malignant hyperthermia. Lancet 1998; 352:1131.

2.    Litman RS. Malignant hyperthermia. Clinical diagnosis and management of acute crisis. Disponível em www.uptodate.com acessado em 27 de setembro de 2013.

3.    Wijidikis EFM. Neuroleptic malignant syndrome. Disponível em www.uptodate.com acessado em 27 de setembro de 2013.

4.    Caroff SN, Mann SC. Neuroleptic malignant syndrome. Med Clin North Am 1993; 77:185.

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