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Esquistossomose

Autor:

Rodrigo Antonio Brandão Neto

Médico Assistente da Disciplina de Emergências Clínicas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP

Última revisão: 23/02/2015

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          A esquistossomose é uma doença parasitária transmitida por planorbídeos (caramujos), também é denominada de bilharzíaze devido a Theodor Bilharz que foi o primeiro cientista a identificar o parasita. Existem três principais espécies de esquistossomose que são o Schistosoma mansoni, que predomina na África e na América do Sul, Schistosoma japonicum (que ocorre principalmente na Oriente Próximo) e o Schistosoma Haematobium (ocorre na África e Oriente Médio), nesta revisão  discutiremos as manifestações clínicas da esquistossomose causada pelo S. mansoni.

          O hospedeiro intermediário varia conforme a espécie de schistossoma sendo no caso do S.mansoni o molusco do gênero Biomphalaria, as principais espécies deste gênero de molusco incluem a B. glabrata (mais importante) e a B. tenagophila (presente no Vale do Ribeira, no estado de São Paulo). Algumas estimativas sugerem que cerca de 5% da população brasileira já foi portadora do S. mansoni, com estimativas do número atual de pessoas portadoras ser de aproximadamente 5.000.000 pacientes.

          As formas graves são raras, mesmo nas zonas endêmicas. As formas graves da esquistossomose são as formas hepatoesplênicas e as formas pulmonares e renais graves. Nos pacientes com imunodeficiência grave ocorre óbito na esquistossomose aguda. O schistossoma haematobium é associado por sua vez com uma forma genito-urinária da doença.

 

Fisiopatologia

          O ciclo de vida do schistossoma é complexo e requer um hospedeiro intermediário e um definitivo. Inicialmente, as cercárias saem do caramujo e entram em humanos por via cutânea, podendo causar uma dermatite denominada “dermatite do nadador”. Os parasitas na sequência atingem a circulação e vão para os pul­mões, neste local podem causar uma reação com tosse e infiltrados pulmonares, associada a eosinofilia sérica e pulmonar, fazendo parte do espectro das pneumonites eosinofíli­cas, ou seja da síndrome de Loefler. Os parasitas apresentam amadurecimento (esquistossô­mu­los) nos pulmões, transformando-se em vermes adultos que depois vão atingir a circulação portal. Os vermes adultos vivem na veia porta, e quando acasalam migram para o plexo hemorroidário para a deposição dos ovos. Uma parte dos ovos atravessa o endotélio vascular, submucosa e mucosa, caindo na luz intestinal, podendo ser eliminados junto com as fezes.

          Na fase aguda da doença ocorre ativação policlonal dos linfócitos B com formação de imunocomplexos, causando artralgias, febre e até lesão renal com glomerulonefrite, que ocorre principalmente nas formas mesângio-capilar e membranosa. Nesta fase da doença, a resposta predominante é Th1, com IFN-gama e IL-2 sendo produzidos. Em uma segunda fase ocorre a ação predominante Th2 com formação de granulomas e reação de hipersensibilidade, com aumento da produção de IL-4 (aumento da produção de IgE) e IL-5 (eosinofilia).

         Os ovos de esquistossoma se alojam em criptas intestinais, em vasos logo abaixo da submucosa. Podem ser observados vermes dentro desses vasos na submucosa. No fígado ocorre formação de granulo­mas no espaço portal, contendo ovos no seu interior. A reação provocada pelo schistossoma leva a formação de fibrose intensa, que progride provocando aumento da pressão portal e desvio do fluxo para a circulação pelo sistema cava. Nas formas pulmonares, há granulomas dentro dos alvéolos, gerando hipertensão pulmonar. As principais lesões causadas no homem são secundárias, portanto aos ovos do parasita.

 

Manifestações Clínicas

          Na fase aguda, as manifestações incluem uma dermatite cercariana no local da penetração do verme, que cursa com edema, eritema e prurido. Esta reação é secundária a uma reação de hipersensi­bilidade imediata mediada por IgE causada por exposições repetidas aos parasitas. Tipicamente, a dermatite ocorre em membros inferiores, mas na maioria dos casos estas manifestações não são percebidas ou relatadas pelos pacientes.

          Apesar das manifestações pulmonares da esquistossomose ocorrerem tipicamente em pacientes com forma hepatoesplênica, uma outra manifestação aguda é a pneumonite intersticial eosinofílica, que se apresenta com tosse e broncoespasmo. Ocorre na passagem do parasita pelos pulmões.

          Uma outra manifestação aguda clássica é a chamada “ febre de Katayama”, também denominada de esquistossomose aguda com manifestações similares nos diferentes tipos de schistossoma. O quadro ocorre 30-40 dias após o contato com água contaminada pelos caramujos infectados. O paciente apresenta febre de aparecimento súbito, diarreia, urticária, dor abdominal, angioedema, mialgias  e tosse seca. Podem ocorrer alterações do SNC e hepatoesplenomegalia, que regridem após a resolução da fase aguda. Os pacientes podem apresentar apenas alguns destes sintomas, mas a febre é a característica mais marcante nesta fase da doença. As manifestações clínicas decorrem da reação imune contra os ovos. A fase aguda raramente é fatal, é autolimitada e muitas vezes é oligossintomática e cursa com eosinofilia marcante (maior 1000 cels/mm3) em quase todos os casos.

           Existem diferentes formas crônicas da doença, uma delas é a forma intestinal, que é comum a todas as espécies de schistossoma. As manifestações clínicas neste caso se restringem a sintomas intestinais que incluem dor abdominal intermitente, anorexia e diarreia. Em casos mais graves podem ocorrer ulcerações colônicas significativas com anemia por deficiência de ferro. A forma intestinal ocorre em 85% dos casos.

           Na forma hepato-intestinal, os ovos atingem a circulação hepática e impactam no espaço pré-sinusoidal, levando à formação de granulomas e fibrose que dificultam o fluxo portal. Há hepatomegalia com predomínio do lobo esquerdo. A arquitetura dos hepatócitos se mantém  preservada.

A principal forma crônica da doença é na forma hepato-esplênica, que pode cursar com ou sem hipertensão portal. Na forma hepatoesplênica sem hipertensão portar, a esplenomegalia tende a regredir com o tratamento, pois o estímulo antigênico desaparece; na forma hepatoesplênica com hipertensão portal surge circulação colateral originando varizes de esôfago, fundo gástrico e intestinais. A ascite é um evento tardio nestes pacientes, pois o envolvimento é pré-sinusoidal, porém após sangramento por varizes os pacientes podem desenvolver quadro hepático isquêmico com aparecimento de ascite, que é de difícil controle. A esplenomegalia é muito importante nestes pacientes. Com o tratamento pode haver redução da hepatoes­ple­­no­me­galia. Em crianças e adolescentes são descritos déficits de crescimento pondero-estatural e desenvolvimento dos caracte­res sexuais, que podem se normalizar após a realização de esplenectomia.

          A função hepática no paciente esquistossomótico é inicialmente preservada. Com o sangramento ocorre deterioração desta função, pois no fígado 70% do suprimento normal sanguíneo dos hepatócitos é feito pela veia porta e 30% pela artéria hepática. No esquistossomótico, o fluxo inverte-se, com proliferação da artéria hepática para cobrir a deficiência da veia porta (ar­te­ria­lização do fígado). Na ocorrência de sangramento, as necessidades não são supridas e ocorre necrose hepática. Alguns fatores podem influenciar o aparecimento de disfunção hepática nestes pacientes incluindo o uso de álcool, que pode levar a dano hepatocelular precoce, hepatite B, que devida a alterações imunes associadas a esquistossomose tem difícil clareamento do HBV, com surgimento de hepatite crônica. Outro fator que pode contribuir para o aparecimento de ascite nestes pacientes é o desenvolvimento de lesões glomerulares que se associam a proteinúria facilitando o aparecimento de ascite. A ultrassonografia abdominal caracteristicamente mostra uma fibrose periportal.

          Na forma pulmonar da doença, os ovos chegam aos pulmões pela artéria pulmonar, através das colaterais pela sequência v. porta – veias esofágicas, v. ázigos – veia cava superior – coração direito – a. pulmonar. A forma pulmonar da esquistossomose é mais frequente quando já está instalada a hipertensão portal e as colaterais estão abertas e os ovos se instalam em arteríolas pulmonares levando a um processo de endarterite. Formam-se granulomas no pulmão ao redor dos ovos, o que causa hipertensão pulmonar. Dispneia é a principal manifestação ocorrendo em mais de 80% dos casos, outras manifestações incluem estase jugular e cor pulmonale. Há sobrecarga das câmaras direitas e o raio-X de tórax revela abaulamento do tronco da artéria pulmonar, além de micronódulos miliares em alguns casos. No início do tratamento antiparasitário da esquistossomose pode ocorrer também manifestações pulmonares por embolizaçãoo de parasitas mortos para circulação pulmonar, mas as manifestações costumam ser autolimitadas, ao contrário da evolução normal da forma pulmonar crônica da esquistossomose em que ocorre hipertensão pulmonar, que é um evento terminal da doença.

          Na forma glomerular da doença ocorre a produção e o depósito de imunocomplexos, o que origina glomerulonefrite mesangio-proliferativa, membrano-proliferativa, glomerulonefrite membranosa ou glomeruloesclerose focal. As manifestações variam desde albuminúria em níveis menores até síndrome nefrótica franca. As formas glomerulares da esquistossomose estão frequentemente associadas às formas hepatoesplênicas.

          Os pacientes podem apresentar ainda complicações neurológicas, entre as quais a principal é a mielopatia ou mielite transversa. A esquistossomose chega a ser responsável por até 4% das mielopatias na África sub-sahariana, os pacientes apresentam dor em membros inferiores, paresia de membros e disfunção vesical e intestinal. Além do envolvimento de medula, pode ocorrer envolvimento cerebral, que pode cursar com convulsões e alterações motores e cerebelares.

          Outras doenças associadas à esquistossomose incluem a chamada enterobacteriose septicêmica prolongada e aumento da possibilidade de desenvolver linfoma (mais comum em mulheres com mais de 40 anos).

 

Diagnóstico e exames complementares

          Na fase aguda, o hemograma revela leucocito­se com eosinofilia importante com 70 a 80% de eosinófilos em sangue periférico. O exame de fezes pode ser negativo (os ovos ainda estão atravessando a parede intestinal). O diagnóstico da esquistossomose aguda é feito pelo encontro de ovos nas fezes e/ou pela sorologia associada aos dados clínicos e epidemiológicos do paciente.

          Na fase crônica, os pacientes podem apresentar pancitopenia devida ao hiperesplenismo e alterações inespecíficas como aumento de enzimas hepatocelulares e outras alterações associadas com hepatopatias. Os métodos diagnósticos principais incluem sorologia, exame parasitológico de fezes e biópsia de válvula retal.

          A sorologia pode ser feita com diferentes métodos incluindo ELISA, radioimunoensaio e hemaglutinação indireta. A sensibilidade é variável conforme a metodologia utilizada, mas usualmente é maior que 90%. O exame de fezes pelo método Kato-Katz apresenta sensibilidade maior que 90% quando utilizado pelo menos quatro espécimes e a sensibilidade de seis exames de fezes é similar à biópsia de válvula retal, que é considerado o padrão-ouro para o diagnóstico.

 

Tratamento

         O tratamento antiparasitário inclui duas opções que são o oxamniquine ou praziquan­tel, em dose única, sendo este último eficaz em zonas endêmicas em mais de 85% dos casos. O controle de cura é feito com exames protoparasitológicos seriados após 40 dias do tratamento. Em pacientes com mielopatia ou manifestações cerebrais da esquistossomose pode ser usado glicocorticoides como prednisona 1 mg/Kg por tempo limitado. A prevenção da doença é importante e inclui o tratamento apropriado dos infectados, medidas de saneamento básico e combate ao hospedeiro intermediário além da educação sanitária da população.

 

Referências

1- Gryseels B, Polman K, Clerinx J, Kestens L. Human schistosomiasis. Lancet 2006; 368:1106.

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