Autor:
Rodrigo Antonio Brandão Neto
Médico Assistente da Disciplina de Emergências Clínicas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP
Última revisão: 27/03/2015
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A Síndrome de Goodpasture é o epônimo utilizado para descrever a síndrome pulmão-rim. Uma dessas entidades clínicas é a doença de Goodpasture, caracterizada por hemorragia pulmonar e glomerulonefrite rapidamente progressiva associada com a deposição linear de anticorpos ao longo da membrana basal glomerular (MBG).
Em 1919, o patologista americano Dr. Goodpasture descreveu uma doença sistêmica com comprometimento pulmonar e renal, sendo esta a descrição inicial da doença. Em 1958, o quadro clínico da síndrome pulmonar-renal com hemorragia alveolar difusa e glomerulonefrite rapidamente progressiva foi descrita por Stanton e Tange e pela primeira vez foi usado o termo de síndrome de Goodpasture. Um grande avanço foi a identificação posterior dos anticorpos anti-membrana basal glomerular(MBG).
A Síndrome de Goodpasture pode ter várias etiologias e por definição não pode ser considerada o diagnóstico final do paciente, pois é necessária a identificação de uma etiologia específica; o termo doença de Goodpasture, por sua vez, é reservado para os casos da síndrome associados a glomerulonefrite por anticorpos anti-MBG.
A glomerulonefrite rapidamente progressiva (GNRP) é uma síndrome em que os pacientes apresentam manifestações de doença glomerular vistas no exame de urina 1 com perda de função renal em período relativamente curto, embora não definido pela literatura (período de dias, semanas ou meses), morfologicamente é caracterizada por extensa formação de crescentes no exame histológico, que usualmente ocupam mais de 80% dos glomérulos, enquanto em doenças de curso mais indolente ocupam menos de 50%. Existem quatro tipos principais de glomerulonefrite rapidamente progressiva:
1-Com AC anti-membrana basal glomerular como na doença de Goodpasture;
2-Por imunocomplexos: pode ser depósitos de IgA na nefropatia por IgA (raro), Acs induzidos pelo estreptococo como na glomerulonefrite pós-estreptocóccica ou outras causas de glomerulonefrite pós-infecciosa, Acs antinucleares como na nefrite lúpica e crioglobulinas e trombos intraluminais na crioglobulinemia mista;
3-Pauci-imune: O paciente apresenta glomerulonefrite necrotizante, mas poucos depósitos imunes. A maioria dos pacientes tem uma vasculite limitada ao rim, com ANCA positivo, alguns desenvolverão manifestações de poliangeíte microscópica ou de granulomatose de Wegener;
4-Doença dom dois padrões de Acs: apresentam padrão de duas das doenças citadas.
A abordagem diagnóstica dos pacientes com síndrome pulmão-rim inclui alguns exames considerados essenciais. Estes exames são hemograma, bioquímica, incluindo creatinina e ureia séricas, radiografia do tórax, sedimento urinário, ultrassonografia renal e exames sorológicos para diferentes etiologias da síndrome. A coleta de culturas é essencial para excluir causas infecciosas da doença. A hemorragia alveolar difusa se manifesta na radiografia com infiltrado parenquimatoso difuso e bilateral. Infelizmente, essas anormalidades radiográficas do tórax não são específicas para o diagnóstico de hemorragia alveolar. O achado de hemoptise, por sua vez, não apresenta boa sensibilidade nem especificidade.
As principais etiologias de síndrome pulmão-rim são especificadas na tabela abaixo.
Tabela: Causas de síndrome pulmão-rim
Causas mais comuns: -Poliangeíte microscópica -Granulomatose de Wegener -Goodpasture -LES
Causas menos frequentes: -Churg-Strauss -Henoch-Schonlein -Síndrome hemolítico-urêmica -Doença de Behcet -Crioglobulinemia mista essencial -Vasculite reumatóide -Terapia com penicilamina |
Os seguintes exames são obrigatórios para avaliar pacientes com síndrome pulmão-rim:
-Urina 1: avaliar hematúria glomerular e outros achados como cilindros;
-Radiografia de tórax;
-Ultrassonografia Renal: descartar problemas urológicos, avaliar tamanho renal;
- Testes microbiológicos (cultura de urina, sangue, saliva);
- Complemento total, C3, C4;
-Anticorpo anticitoplasma de neutrófilos (ANCA);
-Anti-MBG;
-Biópsia renal com imuno-histoquímica.
Em alguns pacientes, a tomografia computadorizada de tórax e a broncoscopia com lavado broncoalveolar podem ser necessárias. O sedimento urinário fornecerá pistas para detectar a doença glomerular por hematúria glomerular. A presença de cilindros hemáticos é extremamente sugestiva do diagnóstico de doença de Goodpasture. Outro achado sugestivo de hematúria glomerular é a presença de acantócitos. Em alguns pacientes a proteinúria estará presente, mas raramente em níveis nefróticos (> 3,5 g / 24 horas).
Nas séries de casos publicadas sobre síndrome pulmão-rim, um dos estudos com 142 pacientes encontrou 87 casos de poliangeíte microscópica ou granulomatose de Wegener (GW) e 22 casos de glomerulonefrite com anti-MBG. A incidência da doença é baixa na população total (10 a 20 casos por milhão por ano), mas 60% dos pacientes com a síndrome pulmão-rim serão diagnosticados como vasculite associada ao ANCA (poliangeíte microscópica ou Wegener) ou doença de Goodpasture (Ac anti-MBG positivo).
Considerando que tanto a poliangeíte microscópica como a doença de Wegener ou a doença de Goodpasture tem marcadores sorológicos específicos e com boa acurácia para o diagnóstico é importante que estes exames sejam solicitados precocemente na avaliação destes pacientes.
Aproximadamente 90% dos soros que produzem um ANCA-c tem anticorpos que são dirigidos contra o antígeni proteinase 3 (PR3), um componente dos grânulos de neutrófilos. Em contraste, ANCA-p representa um achado menos específico, em 70% de pacientes com suspeita de vasculite este padrão está associado a anticorpos dirigidos contra a enzima mieloperoxidase, também um componente de grânulos de neutrófilos. Estes anticorpos específicos podem ser detectados por ensaios ELISA. Para rastreamento com ANCA, o teste de imunofluorescência indireta é o método de escolha. Os os resultados positivos são essenciais para determinar a especificidade do antígeno realizando ensaio ELISA específico.
A detecção de anti-anticorpos anti-MBG é um achado altamente específico para o diagnóstico de glomerulonefrite por Ac anti-MBG. Os anticorpos podem ser detectados in situ por imunoflorescência direta de uma biopsia renal ou sérica. Há poucos relatos sobre a sensibilidade de anticorpos anti-MBG. No entanto, existem relatos de casos de pacientes que tenham presença dos anticorpos na histologia renal, sem AC anti-MBG séricos, assim a ausência do anticorpo sérico não exclui a doença. Aproximadamente 30% dos pacientes com anti-MBG também tem ANCA-p positivo.
Novos testes sorológicos para detecção do anti-MBG têm sido desenvolvidos com sensibilidade e especificidade comparável ao ELISA.
A doença de Goodpasture está raramente associada com outras doenças autoimunes exceto por vasculites sistêmicas. Assim como 30% dos pacientes apresentam ANCA positivo usualmente o Anca-p, os pacientes com vasculite associada ao ANCA também podem por sua vez apresentar Ac anti-membrana basal glomerular (em 5 a 10% dos casos).
Outra associação descrita é de pacientes com síndrome de Alport submetidos a transplante renal que podem em alguns casos desenvolver Ac anti-membrana basal glomerular.
Associação importante com HLA DR2 (aparece em 85% dos pacientes). Os alelos DR1 e DR7 são raramente encontrados.
Há vários casos documentados de exposição a hidrocarbonetos antes do aparecimento de doença clínica. O tabagismo nestes pacientes apresenta associação com aparecimento de hemorragia pulmonar.
Parece relacionada ao desenvolvimento de autoimunidade contra membrana basal glomerular, estes auto-anticorpos apresentam meia-vida curta e o insulto que inicia sua produção não é conhecido. O principal alvo destes anticorpos é o domínio NC-1 na cadeia alfa-3 do colágeno do tipo IV. O Ac anti-MBG ativa o complemento e inicia uma via inflamatória que resulta na ruptura da barreira de filtração. Mediadores inflamatórios recrutam macrófagos e neutrófilos para entrar no espaço de Bowman e estimular a proliferação epitelial, resultando na formação de crescentes. Para o desenvolvimento de mecanismos de mediação celular, células T também são mediadores-chave para o desenvolvimento de grave GN crescêntica. Em ratos, a transferência de células T que reagem específicamente contra a cadeia a3 de colágeno tipo IV foram suficientes para induzir nefrite por Ac anti-MBG. No entanto, em humanos isto não está tão claro.
Ao contrário de outras doenças autoimunes, a glomerulonefrite por Ac anti-MBG costuma ser monofásica, e recidivas são muito raras.
Apresenta distribuição bimodal com dois picos de incidência, um na terceira década e outro na sexta década, o sexo masculino tem predominância discreta, na maioria dos casos a apresentação é com a combinação de glomerulonefrite rapidamente progressiva e hemorragia alveolar, cerca de um terço dos pacientes apresentam glomerulonefrite isolada, raramente a apresentação pode ser hemorragia pulmonar isolada sem glomerulonefrite.
Os pacientes podem apresentar anemia com as manifestações associadas como mal-estar e fadiga. Podem ainda apresentar perda de peso.
Ocorre em cerca de dois terços dos pacientes, sendo mais comum em homens jovens, podendo preceder o aparecimento da doença renal.
Os pacientes se apresentam com hemoptise além de dispneia e tosse, os pacientes apresentam sinais inespecíficos como taquipneia, estertores e roncos. Os achados radiológicos são inespecíficos e a prova de função pulmonar demonstra aumento da DlCO2 devido a presença de hemoglobina no espaço alveolar, este sendo um achado bastante sensível de hemorragia alveolar. A broncoscopia usualmente demonstra hemorragia difusa, e com o lavado broncoalveolar pode descartar quadro infeccioso.
Os pacientes podem apresentar hematúria isolada ou leve alteração da função renal, mas usualmente a apresentação é como glomerulonefrite rapidamente progressiva. O exame de urianálise demonstra eritrócitos de origem glomerular evidenciada pelo dismorfismo eritrocitário, clindros hemáticos (patognômonico de síndrome nefrítica) e proteinúria usualmente leve. A HAS e oligúria são usualmente tardios.
Deve se pensar em outras causas de glomerulonefrite rapidamente progressiva (GNRP) ou de hemorragia pulmonar, portanto as vasculites associadas ao ANCA são um dos principais diferenciais e ocasionalmente alguns pacientes apresentam concomitantemente ANCA e Ac anti-membrana basal glomerular positivos.
O rastreamento dos pacientes com GNRP irá incluir necessariamente ainda AC anti-DNA que é associado à LES que pode apresentar algo além da glomerulonefrite com hemorragia alveolar.
Em casos de dúvida diagnóstica é necessária a realização de biopsia renal, na microscopia óptica pode-se observar glomerulonefrite necrotizante e crescêntica. A microscopia eletrônica com imunofluorescência ajuda a determinar a etiologia da glomerulonefrite crescêntica ou rapidamente progressiva. Existem descrições de três padrões de coloração na imunofluorescência que são o padrão linear da deposição de imunoglobulina, que é diagnóstica para detecção de anticorpos anti-MBG. Um padrão granular de deposição de imunoglobulina pode ser encontrado na púrpura de Henoch-Schonlein, nefrite lúpica, crioglobulinemia, e Glomerulonefrites associadas à endocardites. Este padrão de coloração é mais frequentemente encontrada em pacientes mais jovens. A ausência de coloração na imunofluorescência sugere o diagnóstico de glomerulonefrite pauci-imune. A presença de ANCA-p quando associado com eosinofilia e asma é diagnóstica da Síndrome de Churg-Strauss. Caso contrário, a doença é definido como poliangeite microscópica.
A identificação de anticorpos anti-MBG levou ao desenvolvimento de intervenções específicas para remover estes anticorpos patogênicos. Antes de disponibilidade da terapia atual e da terapia de substituição renal, a mortalidade era superior a 90%. As terapias atuais incluem a combinação de plasmaférese mais corticoides e ciclofosfamida e reduziram a mortalidade para menos de 20. Desde a sua introdução como uma opção terapêutica para a doença anti-MBG em meados da década de 1970, a plasmaférese foi rapidamente adotada em todo o mundo e foi incorporada em todos ensaios clínicos. Devido à raridade da doença, apenas um estudo randomizado comparou terapia imunossupressora com a combinação de terapia imunossupressora, mais plasmaférese. Nesse estudo, 17 pacientes com doença de Goodpasture foram randomizados para receber terapia imunosupressora com plasmaférese e 17 randomizados para terapia imunosupressora isolada. O grupo que recebeu plasmaferese apresentou desaparecimento mais rápido do anticorpo anti-MBG e melhorou a função renal em comparação com o grupo terapia imunosupressora isolada.
Alguns estudos têm empregado azatioprina no lugar de ciclofosfamida, mas estudos comparando esses agentes não foram realizados. A maioria dos investigadores sugere o uso de ciclofosfamida em detrimento da azatioprina. O tratamento padrão consiste em corticosteroides orais (1 mg / kg / dia de prednisolona ou prednisona, no máximo 60 mg), e ciclofosfamida oral (2 a 3 mg / kg) deve-se descontinuar a ciiclofosfamida quando ocorrer leucopenia ( menos de 4000 leucócitos), podendo reiniciar após recuperação.
A plasmaferese diária (50 ml / kg, no máximo 4L) deve ser instituída com um total de 14 sessões ou até que os anticorpos anti-MBG se tornem indetectáveis. Nestas sessões plasma é substituído por uma solução de albumina humana a 4,5%, ou quando hemorragia pulmonar ativa está presente por plasma fresco congelado. Este regime imunossupressor é baseada em opinião de especialistas e não foi testado em um estudo randomizado controlado. Deve-se evitar a plasmaferese se plaquetas menores que 70.000u/mm3 ou hemoglobina menor que 9,0g/dl. Alcalose metabólica, hipocalemia e hipofosfatemia são outras complicações da plasmaférese e podem contraindicar o procedimento.
Os pacientes com envolvimento pulmonar apresentaram maior mortalidade precoce, mas possivelmente por causa da apresentação anterior, melhor sobrevida renal em longo prazo. Hemorragia pulmonar é uma importante causa de morte precoce, mas também responde bem a troca de plasma. Os dados de Levy et al são interessantes e dizem respeito à atribuição de terapia intensiva, como pode-se questionar o valor da terapia imunossupressora intensiva em um paciente com doença anti-MBG apresentando insuficiência renal isolada. A indicação do tratamento específico deve ser precoce, pois poucos pacientes com níveis de creatinina acima de 6 mg/dl apresentaram recuperação de função renal em estudo. Em geral, a ciclofosfamida deve ser continuada durante 2 a 3 meses; a dose de esteroides deve ser reduzida lentamente ao longo de 6 a 9 meses. Como discutido anteriormente, doença anti-MBG é geralmente uma doença monofásica; recorrências são incomuns e não há nenhuma indicação para a terapia de manutenção em longo prazo. Quando os pacientes sobrevivem aos primeiros meses críticos e recuperam função renal, informar em longo prazo se sobrevida do paciente é boa.
Como alternativa à plasmaférese alguns pacientes foram tratados eficazmente por imunoadsorção, método que removeu eficazmente os anticorpos anti-MBG; no entanto, não é claro se isto é um tratamento comparável em eficácia a plasmaférese. Em caso de doença de Goodpasture refratária, o rituximab, que é um anticorpo monoclonal anti-CD20 quimérico, pode apresentar benefício. Outra opção é associação da ciclofosfamida com micofenolato mofetil.
Deve-se lembrar que a profilaxia de pneumocistose é recomendada nestes pacientes com sulfametoxazol-trimetropim enquanto em tratamento imunosupressor.
Para os doentes que se tornaram dependentes de diálise, o transplante renal não está associado a riscos adicionais e tem bom resultado se os anticorpos não são detectáveis na época do transplante.
A sobrevida em um ano é de 75 a 80% e 40% dos pacientes recuperam a função renal, a recuperação é mais frequente em pacientes que se apresentam no diagnóstico com creatinina menor que 6 mg/dl, porém se valores superiores a este e oligúria associada a recuperação da função renal é infrequente. O transplante é uma opção, mas deve idealmente só se realizado após seis meses dos títulos dos auto-anticorpos se tornarem indetectáveis.
Pusey CD. Anti-glomerular basement membrane disease. Kidney Int 2003; 64:1535.
Sanders JF et al. Pulmonary Renal Syndrome with focus on anti-GBM disease. Semin Resp Crit Care Med 2011; 32: 328-334.
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