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Tuberculose Peritoneal

Autor:

Rodrigo Antonio Brandão Neto

Médico Assistente da Disciplina de Emergências Clínicas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP

Última revisão: 15/07/2016

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O peritônio é um dos sítios extrapulmonares de tuberculose mais comuns. Descrito pela primeira vez em 1843, a tuberculose peritoneal (TP) ocorre devido ao desenvolvimento de bacilo de Koch no peritônio. É uma doença que representa um problema de saúde pública em áreas endêmicas. O diagnóstico dessa doença é um desafio; a ausência de sinais clínicos específicos, a falta de testes com alto valor preditivo e a natureza pauci-bacilar da doença complicam o diagnóstico de tuberculose,  muitas vezes com necessidade de diagnóstico histológico através de biópsias do peritônio realizadas idealmente por laparoscopia.

 

Patogênese

A TP é causada por várias espécies de bactérias Gram-positivas conhecidas como complexo Mycobacterium tuberculosis. Essas bactérias pertencem à família da Mycobacteriacea, são caracterizadas por uma parede espessa, que é rica em gordura dando-lhes propriedades de tingimento especiais e uma resistência em relação a muitos antissépticos. As micobactérias podem infectar o peritônio por diferentes mecanismos incluindo:

 

-Disseminação hematogênica de bacilos de um sitio pulmonar primário da infecção para os focos secundários, como o peritônio. Uma resposta imune ocorre normalmente e a evolução é geralmente para a cura. No entanto, algumas bactérias permanecem silenciosas no peritônio durante meses ou anos. Várias causas podem reduzir as defesas do organismo e causar a reativação dos bacilos e sua multiplicação.

-Ruptura de focos na cavidade peritoneal, resultando na formação de focos de necrose caseosa limitados por fibrose em locais que aderem às alças intestinais. Esses focos secundários são formados secundários à ingestão das bactérias que atravessam a mucosa intestinal para a linfa da cavidade peritoneal ou pela propagação hematogênica.

-A partir de lesões em órgãos adjacentes, como intestino ou trompas de falópio.

-Pela contaminação direta do peritônio em pacientes com insuficiência renal crônica em diálise peritoneal.

 

Na TP, a ascite geralmente resulta da obstrução linfática peritoneal causada por um bloqueio da reabsorção de fluido peritoneal. Raramente, a ascite pode resultar de hipertensão portal secundária à compressão da veia portal por linfonodos, mas nesse caso teremos uma ascite com características semelhantes às encontradas na hipertensão portal, ao invés da ascite exsudativa linfocítica habitual da tuberculose peritoneal.

 

Epidemiologia

Nos últimos anos, tem havido um aumento no número total de novos casos de tuberculose. A OMS estima que ocorreram mais de 9 milhões de casos novos de TP em 2007. A maior parte dos casos em 2007 foi registrada na Ásia e na África. A TP continua a ser um problema de saúde pública em áreas endêmicas. Ela representa 1% a 2% de todas as localizações de tuberculose e 31% a 58% das localizações abdominais da tuberculose, sendo associada com a tuberculose pulmonar em 3,5% dos casos. Na tuberculose pulmonar a incidência é maior entre os pacientes mais jovens entre 25 e 44 anos nos países em desenvolvimento.

A epidemia de SIDA no mundo facilitou a disseminação da tuberculose, outros fatores associados com o risco de aparecimento da TP incluem:

 

-Uso prolongado de corticoesteroides;

-Condições sócioeconômicas ruins, com pobre higiene. Os dados da literatura sugerem que a incidência da doença é particularmente elevada em áreas rurais;

-Tratamento com terapia anti-TNF;

-Insuficiência renal crônica em diálise peritoneal;

-Terapia com BCG: como na prevenção do carcinoma de bexiga;

-Alcoolismo e cirrose alcoólica.

 

Manifestações Clínicas

A TP é uma doença subaguda e cerca de 70% dos pacientes apresentam os sintomas por mais de quatro meses antes do diagnóstico ser realizado. Os sintomas evoluem frequentemente durante um período longo.

Os sintomas de apresentação da TP são inespecíficos, o que torna o diagnóstico um desafio. A ascite é o sinal clínico mais comum ocorrendo em 93% dos pacientes, dor abdominal ocorre em 73% dos casos e febre ocorre em 58% dos casos. Outros sintomas incluem sudorese noturna e distensão abdominal que ocorre em pouco menos da metade dos casos. Diarreia também é descrita em até 40% dos pacientes. Outros achados incluem hepatomegalia e esplenomegalia.

A TP é diagnosticada em 6,6% dos casos de ascites. Esta taxa pode chegar a 65,5% durante a exploração de ascite exsudativa em uma área endêmica. A tuberculose pode afetar qualquer parte do sistema reprodutor feminino incluindo trompas de Falópio, endométrio e ovários. Nos países em desenvolvimento representam 7,5% dos casos de infertilidade feminina.

 

Exames Diagnósticos

As alterações dos testes laboratoriais não são específicos e, portanto, eles têm um valor diagnóstico baixo. Anemia normocítica leve, normocrômica e trombocitose são as principais anormalidades laboratoriais encontradas. O número de leucócitos é geralmente normal, no entanto linfocitose é frequentemente encontrada.

A velocidade de hemossedimentação é sempre aumentada, mas os valores não superiores a 60 mm por hora são encontrados em mais da metade dos casos. O líquido ascítico é geralmente amarelo-citrina. Essa característica é encontrada em 77% a 91% dos casos. O fluido ascítico também pode ter uma aparência turva, quilosa ou hemática. A ascite exsudativa é uma quase constante, geralmente com teor de proteínas superior a 3 g / l. O líquido ascítico é geralmente rico em células (> 400 cels / ml) com predominância de linfócitos (> 60%). Uma meta-análise recente sobre a TP encontrou uma predominância linfocítica em mais de dois terços dos casos. A predominância de neutrófilos por vezes é encontrada especialmente em casos de insuficiência renal concomitante ou em caso de infecção da ascite com um outro germe comum. Assim, uma ascite exsudativa rica em células linfocitárias é sugestiva, mas não específica de TP.

O principal diagnóstico diferencial da tuberculose peritoneal é carcinomatose peritoneal. A citologia do fluido ascítico deve ser sempre realizada para procurar células neoplásicas indicando a existência de ascites carcinomatosas, que é o principal diagnóstico diferencial da TP.

Nenhum marcador bioquímico é útil para o diagnóstico da TP. Normalmente, a taxa de LDH em ascite é menor do que a metade da encontrada no soro. No caso da tuberculose, uma taxa de LDH superior a 90 UI / L tem uma sensibilidade que varia entre 77% e 90%, mas uma baixa especificidade (14%). O gradiente albumina sérico-ascítico (GASA) na tuberculose é quase sempre maior do que 1,1g / l ao contrário da hipertensão portal quando o seu valor é maior do que 1,1g / l. A especificidade do GASA para a hipertensão portal é estimada em 98%. Um gradiente inferior a 1,1g / l foi encontrado em 100% dos doentes com tuberculose, mas essa sensibilidade diminui em pacientes com cirrose associada atingindo valores que vão desde 29% a 88%, quando existe a concomitância de TP com hipertensão portal, o GASA tende a seguir o gradiente da hipertensão portal e ser > 1,1. O GASA inferior a 1,1 g / l é também encontrado em pacientes com carcinomatose peritoneal. Uma baixa concentração de glicose no fluido ascítico sugere diagnóstico de TP.

O diagnóstico microscópico por BAAR devido à natureza paucibacilar da TP tem uma sensibilidade inferior a 10% sendo na maioria dos estudos inferior a 5%. O isolamento do bacilo na cultura do líquido ascítico tem uma sensibilidade maior, mas requer um mínimo de 10 a 50 ml de ascite, com esta amostra sendo ultracentrifugada e, em seguida, cultivadas em meio Lowenstein- Jensen. Esse método tem uma sensibilidade de cerca de 35%. A principal desvantagem da cultura é o tempo necessário para obter o resultado. Na verdade, o tempo médio de resultados bacteriológicos é de 45 dias.

O uso do BACTEC automatizado permite uma realização mais rápida do diagnóstico em média de 14 a 27 dias. O tempo de resultados bacteriológicos é encurtado para 15 dias, mas requer um litro de ascite ultracentrifugada. Infelizmente é difícil ter disponível centrífugas com essa capacidade. Esse método tem uma grande taxa de positividade, que varia de 66% a 83%. Um estudo comparativo da sua utilização, em comparação com meio Lowenstein-Jensen, em qualquer tipo de amostra mostrou uma maior sensibilidade de detecção de micobactérias atípicas (100% versus 51,7%), uma melhor especificidade (94,7% contra 78,9%) e uma maior valor preditivo negativo (100% versus 78,9%).

Existem vários relatos de níveis elevados de CA-125 em ascites por TP, com valores em média de 475 u/L e que diminuem para 35 u/L com o tratamento específico para TP, mas esses níveis de CA-125 também podem estar elevados em pacientes com ascites exsudativas de outras etiologias. De qualquer forma, níveis altos de CA-125 sugerem a possibilidade diagnóstica de TP e não só de carcinoma de ovário, assim deve-se tomar cuidados para não superestimar diagnósticos de carcinoma de ovário.

A determinação da atividade de adenosina-desaminase em ascites (ADA) tem sido avaliada em vários estudos, vários limiares já foram propostos para o diagnóstico de TP variando de 27 U/L em alguns estudos até 40 U/L. O aumento da adenosina-desaminase pode ser o resultado de ativação de células T em resposta a antígenos micobacterianos.Este teste tem uma sensibilidade de 96-100%, uma especificidade de 98%, valor preditivo positivo de 95% e um valor preditivo negativo de 97-98%. É um teste reprodutível e barato, mas essa utilidade depende de critérios epidemiológicos. O teste tuberculínico (TT) verifica a resposta da memória celular a antígenos de micobactérias e é positivo em cerca de 70% dos pacientes com TP. Um teste TT positivo não é específico para a tuberculose ativa, mas apenas reflete contato prévio com o bacilo. A sua interpretação varia dependendo do estado imunológico dos pacientes, história de vacinação, contágio ou infecção primária. Resultados falsos negativos são encontrados em 15% a 60% dos casos.

Determinação do interferon-gama é um teste quantitativo que avalia a resposta imune mediada por células. Baseia-se no fato das células T segregarem interferon-gama. Esse ensaio tem uma sensibilidade de 89% para o diagnóstico das formas latentes da TP.

A reação de amplificação de genes por PCR é um teste rápido para isolar o bacilo entre 24 a 48 horas. A utilização na prática clínica dessa técnica é limitada pelo custo elevado e baixa sensibilidade (60% a 80%). A amplificação do gene por reação em cadeia com ligase (LCR) é um outro teste de amplificação molecular. O teste tem sensibilidade de 78%, especificidade de 99% e um valor preditivo negativo de 95% para o diagnóstico de tuberculose extrapulmonar.

A ultrassonografia abdominal pode sugerir o diagnóstico de TP, mas não pode confirmá-lo, e pode acompanhar a evolução em tratamento. A ascite é o achado ultrassonográfico mais frequente (45% a 100% dos casos). Ascite pode mostrar ecogenicidade do líquido ascítico relacionada a sua natureza exsudativa, o que sugere o diagnóstico de TP. Outros sinais sugestivos de TP incluem espessamento do peritôneo, nódulos peritoneais, aderências visualizadas como estruturas lineares hipoecóicas e os linfonodos profundos, muitas vezes descrito como múltiplas massas hipoecoicas e, por vezes, confluentes. Todos esses sinais ecográficos isoladamente não têm valor diagnóstico na TP.

A tomografia computadorizada (TC) é muitas vezes realizada através da avaliação de exploração de ascite exsudativa a fim de encontrar um tumor primário como o câncer de ovário avançado, o principal diagnóstico diferencial da TP. Os principais sinais sugestivos de TP na TC incluem gânglios linfáticos, que geralmente têm centro hipodenso correspondente à necrose caseosa, ao espessamento do mesentério e omento, ao espessamento regular e uniforme do peritônio.

As biópsias cirúrgicas ou laparoscópicas permanecem o meio mais efetivo para confirmar o diagnóstico de TP. Essas biópsias são realizadas por laparotomia ou idealmente por laparoscopia. As taxas de sensibilidade e especificidade são de 93% e 98%, respectivamente.

A doença granulomatosa do fígado pode ser associada com o envolvimento peritoneal que varia entre 25% e 48%. Alguns autores sugerem que a biópsia hepática deve ser realizada sistemáticamente na suspeita da TP. Esse é um método novo minimamente invasivo com pouca ou nenhuma complicação e pode permitir obter resultados muito bons.

 

Tratamento

O tratamento da TP é clínico. A demora em iniciar o tratamento pode aumentar a mortalidade. A taxa de mortalidade média de acordo com os dados cumulativos de 18 estudos, que incluíram mais de 800 pacientes, foi de 19%.

O tratamento de primeira linha é com esquema 1 da OMS que inclui isoniazida (INH), rifampicina (RIF), pirazinamida (PZA), etambutol (EMB). Essas medicações são administradas diariamente durante dois meses, seguidas por quatro meses de terapia de combinação isoniazida e rifampicina, semelhante ao tratamento de outras formas de tuberculose. Embora a duração recomendada de tratamento da TP seja de seis meses, alguns autores têm relatado o tratamento com duração de 12 meses. Contudo, não há evidências para manter um tempo de tratamento para além de seis meses.

A resposta favorável ao tratamento resulta na resolução dos sintomas e no desaparecimento de ascite. As alterações laboratoriais em favor da atividade da doença geralmente normalizarão no prazo de três meses após o início do tratamento. O risco de hepatotoxicidade com as drogas antituberculosas aumenta em caso de doença hepática subjacente e cirrose, particularmente. Parar o tratamento é recomendado em casos de transaminases elevadas até cinco vezes normais em formas assintomáticas, e três vezes o normal em caso de sinais de hepatotoxicidade. Nesse caso, é importante escolher uma de quatro alternativas:

 

-RIF, pirazinamida e EMB durante seis meses;

-INH, RMP, EMB durante dois meses seguidos de isoniazida e rifampicina durante sete meses;

-RIF, EMB, fluoroquinolona e cicloserina (injetável) durante 12 a 18 meses;

-EMB, estreptomicina, fluoroquinolonas e outra segunda linha de medicamentos antituberculose.

 

O uso de corticosteroides é controverso. Alguns autores não mostraram nenhum benefício na combinação de corticosteroides com drogas antituberculose enquanto outros encontraram o oposto. Estudos prospectivos são necessários para entender melhor a contribuição de corticosteroides.

 

Referências

1-Guirat A et al. Peritoneal Tuberculosis. Clinics and Reasearch in Hepathology and Gastroenterology 2011; 35: 60-69.

 

2- Jakubowski A, Elwood RK, Enarson DA. Clinical features of abdominal tuberculosis. J Infect Dis 1988; 158:687.

 

3- Tanrikulu AC, Aldemir M, Gurkan F, et al. Clinical review of tuberculous peritonitis in 39 patients in Diyarbakir, Turkey. J Gastroenterol Hepatol 2005; 20:906.

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