Autor:
Rodrigo Antonio Brandão Neto
Médico Assistente da Disciplina de Emergências Clínicas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP
Última revisão: 09/04/2018
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A glomerulosclerose segmentar focal (Gesf) é uma síndrome clínico-patológica associada a uma lesão glomerular que pode ser idiopática ou secundária a várias outras doenças. A Gesf representa cerca de 20% dos casos de síndrome nefrótica idiopática em crianças e 35% dos casos em adulto, sendo responsável por 50% dos casos em negros nos EUA.
A Gesf pode estar associada com proteinúria isolada e, por vezes, subnefrótica. A doença é o padrão mais comum de síndrome nefrótica idiopática entre os afro-americanos; de acordo com algumas séries publicadas, é o padrão mais comum entre todas as raças. A remissão espontânea da Gesf e os casos idiopáticos não tratados e resistentes ao tratamento progridem frequentemente para insuficiência renal (IR).
O Quadro 1 contém, de forma resumida, a classificação da Gesf.
Quadro 1
CLASSIFICAÇÃO DA GLOMERULOSCLEROSE SEGMENTAR FOCAL | |
Gesf primária ou idiopática |
É, com frequência, associada com síndrome nefrótica |
Gesf secundária |
Cursa, normalmente, com proteinúria não nefrótica e, com frequência, com algum grau de disfunção renal |
Gesf secundária a infecções como HIV |
Toxinas como heroína podem cursar com Gesf; os pacientes com HIV, em particular, podem ter uma evolução rápida para disfunção renal significativa. |
Gesf: glomerulosclerose segmentar focal; HIV: vírus da imunodeficiência adquirida.
Fisiopatologia
A Gesf pode apresentar diversas variantes histológicas, incluindo a GSF clássica, a variante colapsante, que muitos autores consideram uma entidade em separado e que tem prognóstico ruim. Ainda existem as variantes peri-hilar e celular, a variante “tip” ou de ponta com lesão epitelial em ponta glomerular.
Nas formas primárias da Gesf, fatores circulatórios costumam ser os responsáveis pela lesão glomerular; dentre eles, pode-se citar o ativador do receptor da uroquinase plasminogênio, o qual pode ser o responsável. A Gesf secundária representa, comumente, a resposta adaptativa à hipertrofia e à hiperfiltração glomerular que ocorrem com a redução de massa renal e representam um padrão inespecífico de lesão glomerular.
Características Clínicas
A Gesf é uma lesão patológica que, invariavelmente, resulta em proteinúria que varia de assintomática, níveis subnefróticos à proteinúria grave com síndrome nefrótica (hipoalbuminemia, hipercolesterolemia e edema). A proteinúria na Gesf costuma ser não seletiva, incluindo albumina e macromoléculas maiores.
A hipertensão arterial ocorre em cerca de 50 a 60% dos indivíduos, e a taxa de filtração glomerular (TFG) diminuída é observada em, aproximadamente, um terço dos pacientes na apresentação. Os pacientes com Gesf primária apresentam proteinúria nefrótica em 60 a 75% dos casos com hematúria macroscópica ocorrendo em cerca de 40% deles.
Embora seja principalmente caracterizada por proteinúria, tanto a hematúria microscópica quanto a macroscópica podem estar presentes na Gesf. A doença pode ser uma condição idiopática ou primária, bem como uma condição secundária. Em todo o espectro de Gesf, não há nenhum teste absoluto que pode diagnosticar a doença ou diferenciar formas idiopáticas da Gesf secundária.
Clinicamente, a Gesf idiopática costuma apresentar-se com síndrome nefrótica, enquanto que a secundária, com proteinúria subnefrótica. Tipicamente, os níveis séricos de albumina são bem mais elevados, e o edema e a dislipidemia são comuns em síndromes nefróticas menos graves em formas secundárias de Gesf em comparação com os casos idiopáticos.
As causas de Gesf secundária incluem neoplasias malignas, fármacos e infecções, bem como doenças nas quais a hiperfiltração prolongada e a hipertensão intraglomerular resultam em cicatriz glomerular. A Gesf é encontrada em 10 a 15% dos pacientes com obesidade severa.
Essas alterações hemodinâmicas glomerulares inadaptadas podem surgir através de:
redução do número de néfrons funcionais (como sucede após agenesia renal unilateral, ablação cirúrgica ou qualquer doença renal primária avançada);
mecanismos que aumentam o estresse hemodinâmico sobre uma população de neonatos inicialmente normal (como na obesidade mórbida, na doença cardíaca congênita cianótica e na anemia falciforme).
Finalmente, tanto as Gesfs primárias quanto as secundárias devem ser diferenciadas do padrão não específico de cicatriz glomerular focal e segmentar que pode acompanhar uma variedade de condições inflamatórias, proliferativas, trombóticas e hereditárias. Uma avaliação específica para câncer, incluindo exposição a medicamentos e infecções, deve ser orientada pela história médica e pelo exame físico, incluindo a avaliação da infecção pelo vírus da imunodeficiência adquirida (HIV), que é um componente rotineiro na avaliação de pacientes nefróticos incidentes.
A perda de mais de 40% dos podócitos parece induzir cicatrizes renais e proteinúria grave. Além disso, as lesões podocíticas iniciais podem ser seguidas por uma propagação da lesão a podócitos adjacentes, os quais podem, cumulativamente, exceder esses limiares críticos de perda.
A patogênese das lesões esclerosantes glomerulares em Gesfs não é completamente reconhecida, refletindo a dificuldade inerente de se classificarem com precisão os padrões focais de lesão com base no exame patológico de tecido de biópsia limitado e no potencial de coexistência de diferentes tipos de lesões em amostras de biópsia individuais.
Tratamento
As remissões espontâneas são raras em pacientes com proteinúria de alcance nefrótico, ocorrendo em menos de 5% dos pacientes. Se a doença não for tratada e/ou não responde, o curso é tipicamente de proteinúria progressiva e perda da função renal. A Gesf progride para IR em 6 a 8 anos em 50% dos pacientes, sem diferença apreciável observada em crianças em relação aos adultos.
Em pacientes com proteinúria nefrótica, a sobrevida renal é de, aproximadamente, 6 a 8 anos. A Gesf reaparece após o transplante em 30% dos pacientes, contribuindo de forma significativa para a perda da função do enxerto. Um curso progressivo rápido para a IR nos rins nativos prediz um maior risco de recorrência após o transplante renal.
Os fatores de risco da Gesf para pior desfecho renal são sumarizados no Quadro 2.
Quadro 2
FATORES DE RISCO PARA DESFECHO RENAL DESFAVORÁVEL DA GLOMERULOSCLEROSE SEGMENTAR FOCAL | |
Características clínicas |
Sexo masculino Ascendência africana Proteinúria maciça na apresentação Elevação da creatinina sérica na apresentação Incapacidade de conseguir uma remissão parcial ou completa Doença recidivante
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Características histopatológicas |
Variante de colapso Fibrose túbulo-intersticial
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A presença de certos polimorfismos genéticos está associada a um menor risco de recorrência pós-transplante em comparação com outras causas de Gesf primária, e é sugerida a terapia imunomoduladora específica para diferentes pacientes. Várias características clínicas e histológicas podem ser informativas no que diz respeito à previsão do prognóstico da doença.
O gênero feminino parece ser protetor, com progressão mais lenta, bem como parece haver maior probabilidade de remissão parcial ou completa em relação aos homens, enquanto a ascendência africana evolui com curso mais. A presença de proteinúria nefrótica grave (maior que 10g/24h), de IR e de aumento da lesão túbulo-intersticial na biópsia renal, no momento da apresentação, são indicativos de um mau prognóstico.
Conforme mencionado anteriormente, a variante de colapso também está associada a uma progressão mais rápida, enquanto a lesão de “ponta”, que tende a ser responsiva à imunossupressão, tem um melhor prognóstico. Durante o tratamento da Gesf, a ausência de qualquer resposta à terapia imunossupressora é o mais forte preditor de IR, enquanto a remissão completa da síndrome nefrótica com a normalização da excreção de proteínas na urina tem melhor prognóstico.
No entanto, mesmo uma resposta parcial ao tratamento retarda de forma significativa a progressão, sendo, portanto, uma meta de tratamento aceitável. A recidiva é comum (maior que 50%), sendo, subsequentemente, associada a uma progressão mais rápida e uma sobrevida renal pobre.
São consideradas respostas ao tratamento da Gesf:
resposta completa: é uma redução para proteinúria de 200?300mg em 24 horas;
resposta parcial: é uma queda de 50% da proteinúria atingindo níveis menores que os nefróticos (<3,5g em 24 horas);
dependência de corticosteroides: é definida como recidiva com desmame dos glicocorticoides e necessidade de mantê-los para uma resposta terapêutica;
resistência aos corticosteroides: é pouca ou nenhuma queda dos níveis de proteinúria com dose adequada de glicocorticoides após 12 a 16 semanas de tratamento.
O tratamento das Gesfs primárias ou idiopáticas é controverso devido ao fato de existirem poucos estudos clínicos randomizados e controlados e à ausência de opções terapêuticas eficazes e bem toleradas. Apesar de não haver estudos específicos, o uso de inibidores da ECA é recomendado em todos os pacientes.
Em pacientes com síndrome nefrótica, a imunossupressão pode melhorar a proteinúria e retardar a progressão para IR, mas os efeitos colaterais associados às opções atuais de tratamento, incluindo altas doses e cursos prolongados de corticosteroides, agentes citotóxicos e inibidores da calcineurina, são significativos.
Em pacientes sem síndrome nefrótica, não é recomendada a realização de imunossupressão. Naqueles com síndrome nefrótica com albumina <3,5g/dl, é indicada terapia exceto se, em biópsia renal, tiver glomerulosclerose extensa com fibrose intersticial, pois esses pacientes não apresentam boa resposta ao tratamento.
Tratamento insuficiente e recidivas são comuns. A imunossupressão não costuma ser usada na Gesf primária com proteinúria subnefrótica ou em Gesf com suspeita de causa secundária; os princípios de manejo conservador, que visam aos sintomas, são preferidos.
Quando for indicado o tratamento imunossupressor, pode-se iniciar prednisona oral em dose de 1?2mg/kg/dia (máximo de 60?80mg) durante 6 semanas e, depois, 0,5?1mg/kg/dias alternados durante 6 semanas para crianças; 1mg/kg/dia ou 2mg/kg/dias alternados durante 3 a 6 meses em adultos conforme tolerado. Pode ser necessário um curso de 12 meses para conseguir uma resposta. Alguns autores consideram o uso de regimes com glicocorticoides em dias alternados.
Como opção ao uso de glicocorticoides, em pacientes não responsivos a glicocorticoides e em pacientes com proteinúria maciça de >10g em 24 horas, o uso de imunossupressores deve ser considerado. Os inibidores da calcineurina são estudados nesses pacientes, e pode ser utilizada a ciclosporina em dose de 2 a 4mg/kg/dia em doses divididas durante 6 a 12 meses seguidas de um desmame lento conforme tolerado. A medicação deve ser evitada se o clearence de creatinina for <30mL/min.
Outras opções terapêuticas incluem o tacrolimo em dose de 0,1?0,2mg/kg/dia (2?4mg/dia) em doses divididas durante 6 a 12 meses, seguido de um desmame lento conforme tolerado, e o micofenolato de mofetila (MMF) em dose de 25?35mg/kg/dia em doses divididas (dose máxima de 2g/dia), podendo ser associada com dexametasona.
O alvo pressórico em pacientes com Gesf é uma PA alvo inferior a 130/80mmHg; as estatinas devem ser utilizadas se o paciente apresenta dislipidemia; caso ocorra edema, podem ser utilizados diuréticos. A restrição de sal, gorduras e proteínas é indicada como padrão de tratamento da síndrome nefrótica. Pacientes com hipoalbuminemia severa com concentrações de albumina <2,5g/dL apresentam maior risco de tromboembolismo venoso, e pode-se considerar a realização de anticoagulação.
Os agentes citotóxicos têm sido utilizados com sucesso em crianças com doença recidivante e remitente e em adultos que demonstraram, pelo menos, uma resposta parcial à terapia com prednisona. Esses agentes, contudo, apresentam riscos imediatos e de longo prazo significativos, incluindo infecção, propensão à malignidade tardia e infertilidade. Assim, em pacientes com resistência a esteroides ou intolerância, os inibidores de calcineurina emergiram como a escolha terapêutica em muitos centros.
Em um estudo clínico multicêntrico, prospectivo e randomizado, os indivíduos com Gesfs resistentes a corticosteroides foram randomizados para prosseguirem em doses baixas de prednisona, isoladamente ou em combinação com ciclosporina. A terapia foi continuada durante 26 semanas e, posteriormente, foi feito desmame gradual durante 4 semanas. A taxa de resposta nos pacientes tratados com ciclosporina excedeu 70%, mas as recidivas após a interrupção do tratamento eram comuns, superiores a 50%.
Em um estudo randomizado maior, conduzido durante 12 meses, apenas 46% dos participantes experimentaram uma remissão completa e parcial combinada em resposta à ciclosporina e 33% recaíram após a descontinuação da ciclosporina.
Em estudos menores, são observadas taxas semelhantes de remissão completa e parcial em pacientes com síndrome nefrótica dependente de esteroides com o tacrolimo e a ciclosporina; consequentemente, o tacrolimo pode ser considerado um inibidor de calcineurina alternativo. Os inibidores da calcineurina, sobretudo a ciclosporina, devem ser utilizados com precaução em doentes com doença vascular ou intersticial significativa notada na biópsia renal e naqueles com uma TFG <30mL/min/1,73m2 devido ao potencial de nefrotoxicidade.
Um estudo clínico controlado randomizado com crianças e adultos com Gesf resistente a esteroides mostrou que a combinação de um curso de 12 meses de MMF com doses elevadas de dexametasona induziu uma remissão parcial e completa combinada de 33%. Após a descontinuação do MMF e da dexametasona, 18% dos pacientes apresentaram recidiva, demonstrando apenas uma modesta melhora com exposição prolongada à dexametasona e ao MMF.
De acordo com alguns relatos de casos, há melhora na Gesf com sirolimo. Entretanto, esse fármaco tem sido associado com o agravamento da função renal e com o aparecimento de Gesf em aloenxertos renais; além disso, pode ter efeitos colaterais consideráveis em pacientes com proteinúria pré-existente.
O rituximabe é uma alternativa recentemente estudada, mas ainda existem poucas evidências de que possa ser eficaz em pacientes com Gesf; os resultados em estudos foram conflitantes em pacientes com Gesf idiopática ou Gesf recorrente após transplante renal.
A plasmaférese tem sido bem-sucedida no tratamento de alguns pacientes com Gesf recorrente em um aloenxerto renal. Por fim, alguns estudos recentes têm mostrado benefícios com abatacept para pacientes refratários a outros tratamentos; todavia, mais estudos são necessários antes de uma recomendação precisa.
Para indivíduos com formas secundárias de Gesf, o tratamento do distúrbio primário é o primeiro passo no manejo. A resolução de proteinúria foi documentada após a interrupção de fármacos ou medicamentos associados, bem como após o tratamento bem-sucedido de câncer, tratamento de HIV com terapia antirretroviral ou transplante cardíaco em indivíduos com Gesf induzida por doença cardíaca cianogênica.
Alguns pacientes com Gesf secundária à obesidade tiveram remissões de proteinúria após a redução de peso, incluindo perda de peso após cirurgia baríaca. Em doenças onde há diminuição da massa renal e hiperfiltração, a imunossupressão não é indicada; entretanto, em pacientes com essas formas secundárias ou com Gesfs primárias de qualquer gravidade, os bloqueadores do sistema renina-angiotensina-aldosterona devem ser usados para reduzir a proteinúria, diminuir a pressão intraglomerular e prolongar a sobrevida renal, fazendo parte do tratamento em todos os pacientes com Gesf.
Referências
1-Hladunewich MA et al. Focal segmental glomeruloesclerosis in Primer of Kidney Diseases 2013.
2-Thomas DB, Franceschini N, Hogan SL, et al. Clinical and pathologic characteristics of focal segmental glomerulosclerosis pathologic variants. Kidney Int 2006; 69:920.
4-Alachkar N, Carter-Monroe N, Reiser J. Abatacept in B7-1-positive proteinuric kidney disease. N Engl J Med 2014; 370:1263.
5-Hogg RJ, Friedman A, Greene T, et al. Renal function and proteinuria after successful immunosuppressive therapies in patients with FSGS. Clin J Am Soc Nephrol 2013; 8:211.
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