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Homocistunúria e Hiperhomocisteinemia

Autor:

Rodrigo Antonio Brandão Neto

Médico Assistente da Disciplina de Emergências Clínicas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP

Última revisão: 01/06/2018

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A homocisteína é um aminoácido formado pela conversão da metionina na cistina. Muitas condições associadas a altos níveis de homocisteína apresentam uma ampla gama de manifestações clínicas. O nível normal de homocisteína total no plasma é inferior a 15µM. No entanto, o limiar sérico acima do qual um transtorno do metabolismo da homocisteína deve ser suspeitado e uma terapia específica deve ser iniciada é de cerca de 50µM.

A homocistinúria e a hiper-homocisteinemia severa são causadas por distúrbios hereditários do metabolismo da homocisteína raros de herança autossômica recessiva. A hiper-homocisteinemia pode ainda ocorrer em deficiências nutricionais adquiridas da cobalamina ou do folato.

Elevações discretas dos níveis de homocisteína são encontradas em 5 a 7% da população e, apesar de não serem associados aos estigmas da homocistinúria, são associados ao aumento do risco de doença cardiovascular aterosclerótica e tromboembolismo venoso (TEV). Alterações associadas à homocistinúria e à hiper-homocisteinemia severa incluem anormalidades vasculares, neurológicas, oculares e esqueléticas.

 

Etiopatogenia

 

A homocisteína é metabolizada por duas vias principais, que são a transulfuração e a remetilação da homocisteína em metionina. As elevações dos níveis de homocisteína ocorrem por defeitos genéticos nas enzimas envolvidos no metabolismo da homocisteína, deficiências nutricionais e outros fatores, incluindo condições médicas e medicações.

A forma mais comum de hiper-homocisteinemia genética resulta da secreção de uma variante termolábil e com pouca atividade enzimática da metileno tetraidrofolato redutase (MTHFR). A alteração da MTHFR prejudica a síntese de metiltetraidrofato. A liberação defeituosa da cobalamina e os defeitos na redução e no transporte de hidroxocobalamina prejudicam a síntese de metilcobalamina e homocisteína como resultados finais dessa alteração na MTHFR.

As cobalaminas ingeridas são liberadas do alimento para luz gástrica pela combinação de ácido clorídrico e pepsina, onde são levados pelo carreador R. No duodeno, os complexos R-cobalamina são digeridos por proteases pancreáticas liberando novamente as cobalaminas que, dessa vez, são ligadas às moléculas de fator intrínseco (FI) que são resistentes à protease. O FI é originalmente secretado nas células parietais gástricas.

Os complexos IF-cobalamina migram para o intestino delgado aonde chegam ao íleo e são transportados para células epiteliais por receptores específicos para esse complexo, as cobalaminas, agora ligadas às transcobalaminas (TC), principalmente a TC II, são levadas à circulação porta e estocadas no fígado. As TCs são as proteínas de transporte de vitamina B12, e até o momento foram identificados três tipos: I, II e III, cada um com um local de síntese diferente, variações na estrutura de glicoproteínas e, no caso da TC III, com capacidade de ser captada apenas no fígado.

Após a ligação ao receptor de transcobalamina (TCR), a cobalamina ligada ao TC entra na célula através da endocitose mediada pelo lisossoma e é liberada através da proteólise. A cobalamina é metilada pela metionina sintase redutase, se tornando metilcobalamina. Após o seu transporte para a mitocôndria, a cobalamina é convertida em adenosilcobalamina, que faz parte da enzima metilmalonil-CoAmutase, que leva à conversão da metilmalonil-CoA em succinil-CoA.

O defeito nessa enzima pode causar acidúria metilmalônica. Em todas essas condições com remetilação defeituosa, há acúmulo de homocisteína devido à disfunção na síntese de metionina. Entre os distúrbios de remetilação, o defeito de processamento de cobalamina e a deficiência de MTHFR são de longe os mais frequentes, embora, em números absolutos, esses distúrbios ainda sejam raros.

Níveis elevados de homocisteína podem revelar, na verdade, deficiências nutricionais de vitamina B12, vitamina B6 e folato. Estudos mostram que, além de a deficiência dessas vitaminas ser associada com o aumento da homocisteína, a reposição delas leva à diminuição dos níveis séricos de homocisteína. A homocisteína parece ter um papel primário trombogênico e aterosclerótico, e pacientes com hiper-homocisteinemia parecem apresentar espessamento da camada íntima, hipertrofia da musculatura lisa e agregação plaquetária localmente aumentada com formação de trombos.

O papel causal da homocisteína nessas alterações ainda não é completamente elucidado, mas sabe-se que a homocisteína promove recrutamento de leucócitos e up-regulação da expressão da interleucina-8, aumenta a produção de colágeno levando à proliferação de células da musculatura lisa e altera vários fatores pró-trombóticos, incluindo atenuação do ativador de plasminogênio tecidual, ativação de fator VIIa e V, inibição da proteína C, bem como aumenta o estresse oxidativo.

 

Epidemiologia

 

A prevalência mundial e a incidência de hiper-homocisteinemia severa ou homocistinúria são relatadas em 1 a cada 340 mil pessoas. As estimativas mínimas da incidência por programas de triagem de recém-nascidos variaram de 1 em 60 mil para 1 em 300 mil nascidos vivos, variando com a população e o método de triagem. Estudos de países do Oriente Médio mostraram taxas de incidência tão altas como 1 em 1.800. A incidência de defeitos severos de remetilação de homocisteína é provavelmente inferior a 1 em 500 mil nascidos vivos.

 

Manifestações Clínicas

 

As crianças com homocistinúria são comumente normais ao nascer, com gestação e parto sem complicações. A doença normalmente tem um padrão de herança recessiva, e as crianças não tratadas desenvolvem progressivamente os principais sintomas clínicos da homocistinúria. Ocorre retardo do desenvolvimento neuropsicomotor com prejuízo cognitivo em cerca de 60% dos pacientes com um grau variável de gravidade.

Convulsões, anormalidades eletroencefalográficas e distúrbios psiquiátricos também são relatados em cerca de 50% dos casos. Os sinais neurológicos focais podem ser uma consequência de acidentes vasculares cerebrais. Os pacientes podem apresentar alterações semelhantes à síndrome de Marfan como ectopia de lentes miopia e glicoma, sendo complicações frequentes, graves e características.

O descolamento e a degeneração da retina, a atrofia óptica e as cataratas podem eventualmente aparecer. A ectopia de lentes é detectada na maioria dos pacientes não tratados de 5 a 10 anos de idade e em quase todos os não tratados até o final da quarta década, sendo normalmente precedida por miopia. Uma vez que a ectopia de lente ocorre, um tremor peculiar da íris (iridodonese) para o movimento dos olhos ou da cabeça pode ser evidente.

A osteoporose é quase sempre detectada na infância, podendo ter como consequências a escoliose e uma tendência para fraturas patológicas e colapso vertebral. Os pacientes com homocistinúria tendem a ser altos, com ossos longos perto da puberdade, e aracnodactilia, presentes em cerca de 50% dos pacientes.

Outras deformidades ósseas incluem genu valgum, pé cavo e pectus carinatum ou excavatum. A mobilidade articular restrita, particularmente nas extremidades, contrasta com a frouxidão articular observada na síndrome de Marfan. Complicações tromboembólicas, ocorrendo nas artérias e nas veias de quaisquer calibres e sistemas, constituem a principal causa de morbidade e mortalidade em qualquer idade. Muitas vezes, a única pista diagnóstica são eventos tromboembólicos ou ateroscleróticos em crianças ou adultos jovens sem etiologia definida.

Devido à baixa prevalência de arteriosclerose e trombose em crianças ou adolescentes, a homocistinúria deve ser excluída em qualquer caso de TEV ou doença aterosclerótica arterial. O quociente de inteligência (QI) em indivíduos com homocistinúria não tratada varia amplamente de 10 a 138. Em indivíduos não tratados com vitamina B6, o QI médio é de 79 comparado a 57 naqueles que não são responsivos à vitamina B6.

 

Diagnóstico

 

Se a homocistinúria é suspeita clinicamente, deve-se determinar a concentração de homocisteína plasmática. Os valores normais variam de 5 a 15µM/L. Os pacientes com hiper-homocisteinemia podem ser classificados da seguinte forma:

               Elevações moderadas: 15?30µM/l

               Elevações intermediárias: 30?100µM/l

               Elevações severas >100µM/l

 

Normalmente, os pacientes têm concentrações de homocisteína superiores a 50µM/L; nesse caso, a determinação das concentrações de vitamina B12 sérica e níveis de folato tanto séricos como intraeritrocitários, ácido metilmalônico plasmático são necessários. Se a dosagem for menor que 50µM/l, a probabilidade diagnóstica de homocistinúria será mínima. As deficiências nutricionais de vitamina B12 ou folato e outras causas genéticas do metabolismo de cobalamina e folato também devem ser consideradas no diagnóstico diferencial.

Na deficiência de MTHFR, os níveis de folato (eritrócitos ou plasmáticos) são geralmente baixos. A contagem de células sanguíneas com esfregaço de sangue (procurando características encontradas na deficiência de vitamina B12 e de folato), dosagens de vitamina B6, B12, folato e os biomarcadores metabólicos como metionina e ácido metilmalônico são, em geral, suficientes para diferenciar entre as diferentes formas de homocistinúrias.

O diagnóstico definitivo pode ser confirmado a nível molecular por análise de sequência do gene. Se os estudos moleculares não são conclusivos, estudos funcionais podem ser realizados. Os pacientes com suspeita de homocistinúria devem ser estudados após a reposição de vitamina B6 e folato por, pelo menos, 1 semana.

Em pacientes com suspeita de hiper-homocisteinemia, mas com níveis de homocisteína em jejum normais ou próximas do normal, um desafio é a metionina oral (100mg/kg), e o diagnóstico é realizado se os valores após a ingestão oral forem acima de dois desvios-padrões do limite superior da normalidade.

 

Tratamento

 

O tratamento é com reposição de piridoxina em dose de 50?500mg/dia e folato em dose de 5?10mg/dia. Essa reposição pode prevenir retardo mental e outras alterações clínicas características da doença. O objetivo terapêutico geral é reduzir o acúmulo de homocisteína, mantendo as concentrações normais de metionina e folato.

Isso deve corrigir as anormalidades hematológicas e garantir o desenvolvimento neurológico normal ou prevenir uma maior deterioração neurológica. A normalização dos níveis de homocisteína plasmática seria um objetivo terapêutico ideal, mas, na prática, é difícil de se conseguir. Diminuir os níveis de homocisteína para 50?70µM/L parece um objetivo mais razoável.

Em pacientes em que a reposição de folato não conseguir diminuir os níveis de homocisteína, um próximo passo é a reposição de vitamina B11. A vitamina B12 é cofator da metionina-sintase. Sua forma natural, hidroxocobalamina, é mais eficaz do que a forma sintética de cianocobalamina. A hidroxocobalamina pode ser administrada por via oral (1mg/dia a 1mg/semana) de acordo com o nível sérico de B12 para prevenir a deficiência de cobalamina.

A vitamina B6 (piridoxina) é administrada por via oral em doses farmacêuticas em pacientes com hiper-homicisteinemia para tratar possíveis indivíduos responsivos à vitamina B6. Não há consenso sobre a dose e a duração da terapia com B6, que, geralmente, é administrada de 100 a 500 a 1.000mg/dia durante um período de várias semanas, após o qual a concentração da homocisteína é mensurada avaliando se B6 foi eficaz na normalização dos níveis de homocisteína.

A terapia com B6 sempre deve ser combinada com ácido folínico. Devido à toxicidade reportada de altas doses de piridoxina no sistema nervoso, doses diárias superiores a 400 a 500mg/dia em crianças e adultos devem ser evitadas para um tratamento a longo prazo. Em pacientes que não respondem à piridoxina, uma dose diária de 50 a 100mg de piridoxina pode ser adicionada ao tratamento.

A betaína é derivada da colina e pode atuar nas reações de remetilação. A suplementação de betaína oral diminui os níveis de homocisteína. Apesar do uso generalizado, há pouco consenso sobre a dosagem de betaína e a frequência de administração. As doses iniciais são de 150 a 250mg/kg/dia em crianças e 5 a 10g/dia em adultos, geralmente administradas 2 ou 3x/dia.

Não foram notificados efeitos nocivos da metionina aumentada em pacientes que receberam terapia com betaína, exceto um caso de edema cerebral em um paciente com um nível plasmático de metionina acima de 1.000µM. Nos doentes tratados com vitamina B6, uma dieta com baixa quantidade de metionina, por si só, pode ser altamente bem-sucedida, com bons resultados a longo prazo, desde que a aderência à dieta ao longo da vida seja boa.

O tratamento precoce com a betaína pode diminuir a mortalidade e permitir o desenvolvimento psicomotor normal em pacientes com deficiência grave de MTHFR. A metionina oral também pode ser considerada como uma medida terapêutica adicional em defeitos de remetilação. A metionina adicionada pode atuar de forma sinergética com a betaína, fornecendo metionina intracelular, e não leva a maior acúmulo de homocisteína (com o risco de tromboembolismo). A depleção de metionina raramente é corrigida isoladamente pela terapia de betaína.

É prudente adotar medidas para prevenir o risco adicional de trombose, como o uso de ácido acetilsalicílico a longo prazo e de baixa dose, evitando fumar e consumir contraceptivos orais. O óxido nitroso também pode estar relativamente contraindicado porque pode inibir a enzima metionina sintase. A cirurgia apresenta sérios riscos, mas pode ser realizada de forma segura, desde que seja adequada a condição de hidratação e coagulação do paciente.

 

 

Referências

 

1-Schiff M, Blom H. Homocystinuria and Hyerhomocysteinemia in Cecil Medicine 2015.

2-Skovby F, Gaustadnes M,Mudd SH. A revisitt the natural history of homocystinuria due to cystathionine ß-synthase deficiency. Mol Genet Metab. 2010;99:1-3.

3-Schiff M ,Blom HJ . Treatment of inherited homocystinurias. Neuropediatrics. 2012;43:295-304. ?

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