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Doença de Behcet

Autor:

Rodrigo Antonio Brandão Neto

Médico Assistente da Disciplina de Emergências Clínicas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP

Última revisão: 09/02/2021

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A síndromede Behçet ou doença de Behçet (DB) é uma vasculite sistêmica autoimune rara,com uma manifestação clínica bem marcante, que são as úlceras orais aftosas eúlceras genitais recorrentes, entre outras manifestações. O nome da síndrome éoriginário do médico turco Behçet, que, em 1937, reconheceu a combinação deúlceras orais e genitais com hipópio. No entanto, a DB foi identificada muitosanos antes por Hipócrates, que descreveu uma doença endêmica na Ásia Menor,caracterizada por ?ulcerações aftosas, úlceras genitais e lacrimejamento?.

Acaracterística da doença são as úlceras aftosas orais recorrentes, e a maioriados pacientes tem também úlceras genitais recorrentes. Os sintomas também podemincluir manifestações oftalmológicas, dermatológicas, musculoesqueléticas,neurológicas, vasculares, intestinais e pulmonares. O diagnóstico pode serdifícil assim como o manejo da doença.

 

Epidemiologia

 

Aprevalência da DB varia por grupo étnico e distribuição geográfica. É maiscomum ao longo da antiga rota da seda da Ásia para o Mediterrâneo e tem a suaprevalência elevada na Turquia ocidental e em Israel (20-150 casos/100.000habitantes). Em comparação, as taxas de prevalência estimadas nos EUA e ReinoUnido têm sido relatadas como de 5,2 casos/100.000 habitantes.

Ocorretipicamente em adultos jovens com idade entre 20 a 40 anos. Em todo o mundo,homens e mulheres são igualmente afetados, porém, nos EUA e na Europa, aincidência é maior em mulheres. Homens, em geral, têm doença mais agressiva,particularmente no Oriente Médio.

 

Patogênese

 

Apatogênese da DB é desconhecida. A doença é considerada uma vasculite, mas, aocontrário de outras vasculites, pode afetar os sistemas venoso e arterial eatingir vasos de todos os calibres e, em particular, o sistema nervoso central(SNC). A avaliação histológica não demonstra vasculite clássica necrotizante,granulomas ou células gigantes. Algumas das lesões da DB são comuns, tais comoúlceras mucosas e lesões papulopustulosas, não mostrando lesão vascular. Trombosee aneurismas arteriais, em particular aneurisma da artéria pulmonar, também sãomanifestações específicas da DB. Além disso, o tromboembolismo venoso é comumna DB.

Adistribuição geográfica e a agregação familiar sugerem uma predisposiçãogenética para essa síndrome. A associação mais forte foi com o HLA e, emparticular, o HLAB51/B5. Há um risco maior de DB em pacientes com HLAB51.Apesar desses resultados, o HLAB51 representa apenas 20% da hereditabilidade dadoença. Muitos outros genes não-HLA foram associados com DB, incluindo genesque codificam citocinas, fatores de crescimento e moléculas de adesão.

 

Manifestações Clínicas

 

A doençaafeta em igual proporção homens e mulheres, mas os homens costumam apresentarquadros mais graves. A manifestação mais característica são as ulceraçõesaftosas orais dolorosas, vistas em mais de 95% dos casos. Algumas manifestaçõessão mais frequentes em alguns grupos populacionais como, por exemplo, a patergia,uma reação anormal da pele ao trauma, a qual está entre os principais critériosexigidos para o diagnóstico e ocorre em 70% dos casos na Turquia, mas é rara empaíses europeus e em norte-americanos.

A doençaocular é uma causa importante de morbidade associada com a DB e pode seapresentar como uveíte anterior (algumas vezes, com hipópio), uveíte posteriorou vasculite retiniana. No Japão, a DB é a principal causa de cegueiraadquirida. A uveíte agressiva é comum também, com altas taxas de cegueira,doença vascular e morte, mas é uma complicação rara em populações europeias enorte-americanas.

Tem sidoproposto que os sintomas de DB têm uma tendência em apresentar-se como dois subgruposdistintos, um deles com uma combinação de acne, artrite e entesite, sendo particularmentecomum em casos familiares, sendo que esses pacientes, com frequência,apresentam lesões pustulosas secundárias à infecção por S. aureus. Apesar dasemelhança com as espondiloartropatias soronegativas, esse subgrupo não estáassociado com sacroileíte ou HLA B27. O segundo subgrupo são os pacientes commanifestações vasculares associadas, que podem ocorrer com TVP. Além disso, tambémocorrem tromboses venosas superficiais e profundas em conjunto, assim comotrombose do seio venoso dural.

Amanifestação associada com maior risco de vida são os aneurismas de artériapulmonar com mortalidade de 25 a 30% dos casos, com o paciente podendoapresentar quadro de grandes hemoptises. Esses aneurismas são frequentementeassociados a outras manifestações vasculares periféricas. Manifestaçõesneurológicas podem ser muito variadas e incluem principalmente meningiteasséptica, lesões parenquimatosas do SNC e vasculite cerebral, mas podemincluir praticamente qualquer sintoma.

As úlcerasgenitais são outra manifestação frequente e ocorrem na maioria dos pacientes.As principais manifestações da DB no Quadro 1.

 

Manifestações da Doença de Behçet

 

·                   Úlceras orais

·                   Acne

·                   Papulopustulose

·                   Eritema nodoso

·                   Patergia

·                   Vasculite leucocitoclástica

·                   Pioderma gangrenoso

·                   Uveíte

·                   Vasculite retiniana

·                   Artrite não erosiva

·                   Entesite

·                   Anorexia

·                   Vômitos

·                   Diarreia

·                   Lesões parenquimatosas cerebrais

·                   Trombose do seio dural

·                   Hipertensão intracraniana

·                   Tromboflebite superficial

·                   Trombose venosa

·                   Síndrome de Budd-Chiari

·                   Trombose arterial

·                   Aneurisma arterial

·                   Trombose e aneurisma da artéria pulmonar

·                   Doença valvular cardíaca

·                   Pericardite e miocardite

 

 

Diagnóstico

 

Odiagnóstico da DB é clínico. Não existem exames laboratoriais ou de imagemconfirmatórios. O reconhecimento dessa síndrome é um desafio. O atraso nodiagnóstico pode levar a resultados devastadores. Deve-se considerar essediagnóstico em todos os pacientes com úlceras orais e genitais recorrentes. Osexames laboratoriais podem mostrar sinais de inflamação crônica como anemia,leucocitose, trombocitose, aumento de marcadores inflamatórios como VHS e PCR.Os exames laboratoriais são utilizados para excluir outras causas de doença.

A avaliaçãoda doença inclui exames, como dosagem do FAN, anti-DNA, fator reumatoide,anticorpos antipeptídeos citrulinados (anti-CCP), ANCA, anticorpoanti-mieloperoxidase e antiproteína 3, dosagem de complemento. Pesquisas deinfecções associadas podem incluir rotineiramente sorologias para sífilis,Lyme, clamídia, tuberculose e vírus. Existem critérios classificatórios para adoença que têm sido debatidos atualmente. São eles:

·              Úlceras orais recorrentes (pelo menos, 3 vezesem 1 ano)

·              Úlceras genitais recorrentes

·              Lesões oculares (uveíte anterior ou posterior,células no vítreo ou vasculite retiniana)

·              Lesões cutâneas (eritema nodoso,pseudofoliculite, lesões papulopustulares ou acneiformes)

·              Teste de patergia positivo

 

É necessáriaa presença de três critérios positivos, sendo o critério número 1 obrigatório.Recentemente, foi proposto que lesões vasculares como tromboses e aneurismastambém façam parte dos critérios, mas isso ainda não é universalmente aceito.

 

Manejo

 

O manejo eo tratamento da DB devem ser adaptados para a extensão da doença e o envolvimentode órgãos. Para lesões cutâneas e de mucosas leves e pouco frequentes, agentestópicos são os preferidos, preferencialmente os corticosteroides tópicos.Preparações com corticosteroides, lidocaína gel e suspensão com sucralfato sãoindicações. O sucralfato foi eficaz em um estudo para úlceras orais. Recomenda-semanter bons cuidados periodontais orais e boa limpeza genital. Para úlcerasorais e genitais recorrentes, é recomendado o uso de colchicina 1-2mg/dia, emdose dividida em 2 a 3 vezes.

Érecomendado pelas diretrizes que qualquer paciente com DB e doença inflamatóriaocular que afeta o segmento posterior tenha um regime de tratamento que incluiazatioprina e corticosteroides sistêmicos. Caso o paciente apresente doençaocular grave definida como perda visual maior do que 2 linhas da escala de acuidadevisual 10/10 ou doença retiniana (vasculite da retina ou envolvimento macular),recomenda-se utilizar a ciclosporina ou o infliximab em combinação comazatiorpina e corticosteroides. Uma alternativa é utilizar interferon com ousem corticosteroides.

Não hánenhuma evidência significativa para guiar o tratamento da doença de grandesvasos na DB. Para o manejo da trombose venosa profunda (TVP) aguda na DB,agentes imunossupressores tais como corticosteroides, azatioprinaciclofosfamida ou ciclosporina são recomendados. Para o manejo de aneurismaspulmonares e arterial periféricos, ciclofosfamida e corticosteroides sãorecomendados.

Da mesmaforma, não há dados controlados do benefício com uso de anticoagulantes,antiagregantes plaquetários, ou antifibrinolíticos no manejo de TVP ou para aanticoagulação para as lesões arteriais da DB. Ainda não existem recomendaçõesbaseadas em evidências para o manejo do envolvimento gastrintestinal de DB.Agentes como sulfassalazina, corticosteroides, azatioprina, antagonistas doTNF-a e talidomida podem ser considerados antes da indicação de cirurgia nascomplicações abdominais da DB, exceto em situações de emergência.

Na maioriados pacientes com DB, a artrite pode ser manejada com colchicina. Não existemcontrolados para orientar o manejo do envolvimento do SNC em DB. Paraenvolvimento do parênquima cerebral, o tratamento pode incluir corticosteroides,interferon, azatioprina, ciclofosfamida, metotrexate e antagonistas do TNF-a.Para trombose do seio dural, os corticosteroides são recomendados.

Aciclosporina não deve ser utilizada em pacientes com DB com envolvimento do SNC,a menos que seja necessária para a inflamação intraocular. A decisão de setratar de envolvimento da pele e da mucosa depende da gravidade percebida pelomédico e pelo paciente. O envolvimento mucocutâneo deve ser tratado de acordocom as lesões dominantes ou codominantes presentes. Medidas tópicas como corticosteroidesdevem ser a primeira linha de tratamento de úlceras orais e genitais isoladas.

Lesõesacneiformes são, em geral, apenas de preocupação estética. Assim, as medidastópicas como as utilizadas na acne vulgar são suficientes. A colchicina deveser preferida quando a lesão dominante é o eritema nodoso. Úlceras de perna naDB podem ter diferentes causas. O tratamento deve ser planejado conformeresposta clínica e o interferon e antagonistas de TNF-a podem ser consideradosem casos resistentes.

Em relaçãoàs lesões genitais, a higiene adequada deve ser fortemente recomendada, estandoassociada com a diminuição da atividade da doença. A terapia sistêmica énecessária quando as lesões são frequentes ou graves e prejudicam a qualidadede vida. Os glicocorticoides por via oral podem ser usados por curtos períodospara tratar erupções. A colchicina é o agente poupador de corticosteroide delongo prazo mais amplamente utilizado. Os estudos provaram que ela é benéficapara o tratamento de úlceras genitais e eritema nodoso, mas a sua eficácia notratamento de úlceras orais tem sido debatida.

Aazatioprina é uma boa escolha para a doença refratária resistente mucocutânea.Talidomida, ciclosporina e interferon a (IFN-a) também têm sido estudados paraa doença mucocutânea e mostraram ser eficazes, mas raramente são utilizadospara essa indicação devido ao seu perfil tóxico. Os antagonistas do TNF-a são,em geral, iniciados para outras indicações mais graves, mas também tratam apele e lesões orais.

Dadosrecentes sobre o apremilast, um inibidor da fosfodiesterase oral, mostram apromessa para essa nova medicação no tratamento de úlceras orais. O apremilasté uma boa alternativa para diminuir a dose de glicocorticoide. A dose inicial éde 10mg/dia e pode ser aumentada em 6 dias até 30mg, 2x/dia. O tocilizumab,embora seja eficaz para outras manifestações, não parece ter ação nasmanifestações cutâneas.

Asmanifestações oculares mais comuns são uveíte anterior e posterior. As uveítesisoladas de câmara anterior são altamente sensíveis ao uso de glicocorticoidestópicos combinados com agentes midriáticos. Doença anterior refratária eenvolvimento do segmento posterior requerem terapia mais agressiva. Osglicocorticoides sistêmicos (em geral, prednisona, 1mg/kg/dia) são utilizadosinicialmente para controlar a inflamação aguda com redução gradual da dose.

Agentespoupadores de esteroides são adicionados no início do curso da doença. Asdiretrizes recomendam utilizar a azatioprina para o envolvimento de câmara posterior,pois a medicação reduz a piora da uveíte e impede a perda visual. Em casos de doençasresistentes, a ciclosporina e antagonistas do TNF-a devem ser considerados. Essesagentes podem ser adicionados à azatioprina ou utilizados como agente único.

Aciclosporina tem a vantagem de ser de ação rápida e reduz a frequência e a gravidadedos ataques oculares em vários estudos. Os antagonistas do TNF-a são indicados empacientes refratários a outras medicações modificadoras da doença. A maioriados casos tem usado infliximab, mas também há evidências para apoiar o uso deadalimumab e golimumab. Etanercept não é comumente utilizado.

A artritenão deformante da DB é, em geral, intermitente e recorrente. Osglicocorticoides e anti-inflamatórios não esteroidais podem ser utilizados paratratar ataques agudos. A colchicina é eficaz e, normalmente, é a medicação deescolha em dose de 1-2mg/dia. Agentes mais agressivos, tais como azatioprina,IFN-a e agonistas do TNF-a, embora eficazes, são reservados para casos maisrefratários. Na artrite persistente, a azatioprina é considerada a segundaopção.

Nãoexistem estudos para orientar o tratamento da doença vascular na DB. Otratamento inicial é com glicocorticoides em altas doses. Em situações de riscode vida ou ameaçadoras aos órgãos, é indicado o uso de metilprednisolona, 1g,por 3 dias, seguido de prednisona com o uso concomitante de ciclofosfamida. Osprimeiros dados de relatos de casos de infliximab são promissores. Diversos casosde comprometimento vascular têm sido tratados com sucesso com infliximab.

Em quadrosde tromboses arteriais, a cirurgia deve ser evitada enquanto os pacientes têm adoença ativa. As taxas de complicação são elevadas para procedimentoscirúrgicos ? até 24% em algumas séries de caso. Oclusões de enxerto eaneurismas de anastomose são mais comuns. No entanto, a cirurgia pode sernecessária para emergências isquêmicas ou aneurismas rotos. Procedimentos deradiografia intervencionista são melhor tolerados e são, muitas vezes,necessários em casos de oclusão da artéria renal e doença arterial periférica.

A reduçãodo risco de trombose recorrente é alcançada com imunossupressão. A azatioprinaé o agente de primeira linha mais utilizado na trombose venosa. Anticoagulantesnão mostraram grande benefício. Além disso, anticoagulantes aumentam o risco dehemorragia em pacientes com aneurismas. No entanto, a indicação paraanticoagulação ainda é controversa e deve ser decidida caso a caso. Glicocorticoidese ciclofosfamida devem ser considerados. Infliximab foi ineficaz em 2 de 3casos relatados de uma série de pacientes com síndrome de Budd-Chiari etrombose da veia hepática.

Não háestudos controlados para orientar a terapia nas manifestações neurológicas. Adoença do parênquima cerebral é tratada com altas doses de glicocorticoides. Tipicamente,1g de metilprednisolona é administrado durante 3 a 7 dias (até haver melhora),seguido por prednisona. Para a doença grave, a ciclofosfamida foi o agentepoupador de corticosteroide de eleição, apesar dos dados pobres para apoiar asua eficácia.

Antagonistasdo TNF-a podem ser úteis. Para quadros mais leves, a azatioprina é uma boaopção para manter o controle da doença. A ciclosporina, por sua vez, deve serevitada nesses pacientes, pois, em estudos, foi associada com piora dossintomas neurológicos. O tocilizumab é um agente promissor, tendo sido eficazem duas séries de casos de pacientes refratários a outras terapiasimunossupressoras.

Para casosmais leves de envolvimento gastrintestinal por DB, a sulfassalazina ou ácido5-amniosalicílico são opções. Para casos mais graves, glicocorticoides eazatioprina são a terapia de primeira linha. Há vários relatos de casos desintomas gastrintestinais resistentes respondendo a antagonistas de TNF-a (principalmenteinfliximab). Esses agentes podem ser adicionados a sulfassalazina ouazatioprina.

 

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