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Transfusão de Concentrado de Hemácias em Pacientes Críticos

Última revisão: 20/08/2009

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Reproduzido de:

Guia para o Uso de Hemocomponentes

Série A. Normas e Manuais Técnicos [Link Livre para o Documento Original]

MINISTÉRIO DA SAÚDE

Secretaria de Atenção à Saúde

Departamento de Atenção Especializada

Brasília / DF – 2008

 

7 Transfusão de Concentrado de Hemácias em Pacientes Críticos

A anemia é um dos problemas mais comuns nos pacientes de terapia intensiva. Ela surge logo nos primeiros dias de internação dentro das UTIs e pode se sustentar, ou se agravar, ao longo do tempo de internação. A etiologia da anemia em pacientes críticos é multifatorial. Entre as diversas causas, a perda de sangue decorrente de procedimentos cirúrgicos, trauma e sangramentos gastrointestinais, ainda são as mais significativas. No entanto, a terapia transfusional utilizada para controle da anemia parece estar associada a importantes efeitos adversos, tais como infecções nosocomiais, comprometimento imunológico, injúria pulmonar, reações hemolíticas febris e não-febris, aumento da incidência de câncer e, portanto aumento da morbidade e mortalidade.

 

EVIDÊNCIAS ATUAIS

Diversos trabalhos têm estudado diferentes populações de pacientes críticos cirúrgicos, clínicos e cardiopatas. Alguns registros e ensaios clínicos vêm tentando esclarecer a relação entre a correção da anemia com a transfusão de concentrados de hemácias e as taxas de sobrevida ou mortalidade associadas a esta prática. Assim como identificar qual o nível de hemoglobina ou hematócrito ideal do paciente crítico vem sendo um desafio na terapia intensiva, considerando o fato de que a heterogeneidade das populações estudadas é um dificultador para se estabelecer uma resposta a esta pergunta. Pacientes clínicos, cirúrgicos, cardiopatas, vasculopatas, oncológicos, dentre outros, provavelmente tem uma resposta diferente à anemia. Além destas características, a forma como se estabelece a queda dos níveis de hematócrito e hemoglobina também pode ser um fator relevante.

Carson et al. (1996), em um estudo retrospectivo com 1.958 pacientes (70% mulheres) cirúrgicos que se recusaram a receber transfusões por questões religiosas, demonstrou uma associação entre níveis de hemoglobina baixos no pré-operatório e mortalidade. Esta associação foi mais pronunciada em pacientes cardiopatas.

Mais recentemente, outros dois registros demonstraram uma elevada prevalência de anemia entre pacientes críticos.

No Brasil, foi realizado uma coorte prospectiva, com 231 pacientes em 19 UTIs, envolvendo sete hospitais universitários, oito hospitais privados, dois hospitais públicos e dois públicos-privados, entre o período de 22 de novembro e 6 de dezembro de 2004, com o objetivo de medir a freqüência de anemia após 48 horas de internação e avaliar a prática transfusional de hemácias. A incidência de anemia nas UTIs estudadas foi de 33% e aumentava com o tempo de internação (55% ao final da primeira semana) semelhante a outros estudos. O estudo brasileiro, embora com uma população menor, mostrou uma tendência a um limiar mais restritivo mesmo tendo uma menor amostragem e considerando as limitações de uma coorte com período curto de avaliação.

No ensaio clínico de Hebert et al. (1999), 834 pacientes críticos foram randomizados para duas estratégias de transfusão: uma considerada restritiva (hemoglobina entre 70 – 90g/l) e um outro grupo chamado de liberal (hemoglobina entre 100 g/l e 120 g/l). Os resultados de mortalidade em 30 dias não foram diferentes entre os dois grupos. Os pacientes menos graves (APACHE = 20) e mais jovens tiveram uma tendência a menor mortalidade no grupo restritivo, enquanto aqueles com infarto agudo do miocárdio (IAM) e angina instável parecem ter se beneficiado mais de uma estratégia de transfusão liberal.

Uma revisão sistemática reunindo 10 ensaios clínicos sobre limiares transfusionais tentou comparar a evolução de pacientes randomizados entre uma estratégia liberal e uma estratégia restritiva em diversos ensaios clínicos. Os autores concluíram que a mortalidade, a taxa de eventos cardíacos, morbidade e tempo de internação hospitalar não foram diferentes. Entretanto, deve-se considerar que os estudos reunidos nesta revisão eram bastante diferentes em tamanho de amostras (22 a 838 pacientes) e os limiares transfusionais para cada ensaio também foram bastante diferentes. Os dados desta metanálise reforçam a possibilidade de uma prática transfusional mais restrita para tratar anemia nos diversos cenários.

Nas últimas três décadas, o desenvolvimento de tecnologias de diagnóstico e monitorização hemodinâmica invasiva à beira do leito permitiu a avaliação do impacto da diminuição de hemoglobina e hematócrito na performance hemodinâmica dos pacientes críticos. A transfusão de hemácias passou a utilizar outras variáveis além de níveis séricos de hemoglobina e hematócrito. Os conceitos de conteúdo arterial de oxigênio (CaO2 = Hb x 1.34 x SaO2 + PaO2 x 0.0031) e transporte de oxigênio (DO2 = Débito Cardíaco x CaO2) passaram a ser empregados como potenciais guias terapêuticos. Em um estudo de ressuscitação de pacientes com sepse grave ou choque séptico, quando a transfusão foi guiada por metas de consumo de oxigênio tecidual (saturação venosa central – ScVO2) associada a valores de hematócrito, os pacientes tiveram menor mortalidade (30,5% x 46,5%). Esta terapêutica guiada por metas determinou também uma maior transfusão (64% x 18,5%). As taxas de mortalidade observadas devem ser consideradas, no entanto, como resultado de outras terapias instituídas também, como inotrópicos e suporte com aminas vasoativas.

Apesar das evidências não responderem de maneira precisa qual o limiar transfusional de pacientes anêmicos, a literatura promoveu o debate sobre a validade das transfusões de hemácias em pacientes críticos com anemia de maneira generalizada obedientes a regra empírica de 10/30 proposta em 1942.

 

O PACIENTE CRÍTICO COM DOENÇA CARDIOVASCULAR E ANEMIA

O comprometimento cardiovascular freqüentemente está presente nos pacientes críticos. A preocupação com a oferta de oxigênio ao miocárdio sempre recebeu destaque nas discussões sobre o tratamento de pacientes cardiopatas com anemia na terapia intensiva.

Diversos estudos de pacientes cardiopatas já tentaram demonstrar a importância de se tratar anemia nestes pacientes. Estudos de coorte, pequenos, que envolveram pacientes anêmicos, de alto risco para cirurgia vascular (NELSON; FLEISHER; ROSENBAUM, 1993), perioperatório cardiovascular em testemunhas de Jeová (Carson et al., 1996), e mais recentemente, um multicêntrico envolvendo 3.500 pacientes para cirurgia cardíaca (Karkouti et al., 2008) apontam em favor da correção da anemia pelo risco aumentado de morbidade e mortalidade. Futuros estudos deveriam ser realizados, para esclarecer se realmente as terapias direcionadas especificamente para a correção da anemia pré-operatória, poderia realmente atenuar os efeitos adversos, para cada categoria cirúrgica, sem gerar dano.

Outro estudo retrospectivo com 1958 pacientes cirúrgicos que se recusaram a receber transfusão demonstrou que pacientes com hemoglobina baixa ou perda de sangue substancial durante a cirurgia esteve associada a um maior risco de morte e morbidade no grupo de cardiopatas

Mais recentemente, Karkouti et al. (2008) demonstrou em uma coorte de 3.500 pacientes que se submeteram à cirurgia cardíaca, que a presença de anemia no pré-operatório esteve associada a um pior prognóstico no pós operatório.

Dois estudos observação que exploraram as conseqüências da anemia em pacientes com doença coronária e infarto agudo do miocárdio (IAM) mostraram resultados divergentes. No estudo de Wu et al. (2001), 78.974 pacientes idosos (> 65 anos) e com IAM foram agrupados de acordo com o hematócrito na admissão. Os grupos foram analisados para verificar se houve associação entre o uso de transfusão e a mortalidade em 30 dias. Os autores concluíram que a transfusão esteve associada à menor mortalidade em pacientes com hematócrito menor que 30% e talvez possa beneficiar pacientes com valores menores que 33%.

Um outro estudo, de Rao et al. publicado no JAMA em 2004, envolvendo mais de 20.000 pacientes com síndrome coronariana aguda, pois analisou o conjunto de dados de 3 ensaios clínicos relativos ao tratamento do IAM (GUSTO IIb, PURSUIT e PARAGON B) relatou que não houve uma associação de melhora da sobrevida, quando as transfusões de hemácias eram feitas com níveis de hematócrito entre 20% ou 25%. Adicionalmente, constataram claramente piores resultados, quando essas transfusões eram associadas com valores de hematócrito maiores que 30%.

Os diferentes resultados destes estudos talvez possam em parte ser explicados por diferenças entre as populações estudadas. O estudo de Wu et al. (2001) envolveu pacientes idosos com doença cardíaca (IAM) ao passo que o estudo de Rao et al. (2004) consideraram pacientes mais jovens submetidos a estratégias de reperfusão e que necessitaram de intervenções transfusionais mais agressivas. Desta forma, é possível que a indicação de transfusões em pacientes mais idosos com comorbidades possa estar indicada para um limiar de hematócrito diferente de pacientes mais jovens (por vezes, com perdas agudas durante terapêutica de reperfusão). Apesar de resultados aparentemente conflitantes, estes dois estudos demonstraram que a transfusão de hemácias em pacientes com níveis de hematócrito mais elevados estiveram associados a efeitos adversos.

No caso de pacientes de terapia intensiva, nos quais a doença cardíaca isquêmica predominantemente não foi o diagnóstico primário, as dúvidas em relação ao limiar transfusional permanecem. No estudo de Hebert et al. (1999) (TRICC), a mortalidade entre os pacientes com doenças cardiovasculares não foi maior no grupo randomizado para receber a estratégia transfusional restritiva. Em uma análise do subgrupo de 357 pacientes com doença cardiovascular, não houve diferença de mortalidade em 30 dias entre a estratégia restritiva e liberal de transfusão (23% x 23%; IC: -8,4% – 9,1%). Mesmo quando analisados apenas os pacientes com doença isquêmica (257 pts), não houve diferença de mortalidade em 30 ou 60 dias. Entretanto, o grupo de pacientes com doença cardíaca isquêmica confirmada, doença vascular periférica ou comprometimento cardíaco importante quando submetido à terapêutica restritiva, apresentou uma tendência à menor sobrevida. Os autores concluem que baseados em seus resultados, a maioria dos pacientes críticos estáveis com doença cardiovascular devem ser transfundidos apenas quando o nível de hemoglobina diminuir abaixo de 70 g/l, tentando manter níveis entre 70 g/l e 90 g/l. Uma possível exceção seria o grupo de pacientes com síndrome coronariana aguda – angina instável e IAM.

Considerando estes argumentos, pelo menos nos casos de doença cardíaca isquêmica aguda, é possível que se deva adotar uma estratégia transfusional mais restritiva naqueles indivíduos mais jovens, com boa reserva cardíaca, capazes de suportar abordagens mais agressivas ao tratamento da síndrome coronária aguda. As transfusões de hemácias não parecem ter efeito incremental em pacientes após IAM com hematócrito > 20% ou uma hemoglobina superior a 70 g/l como descrito no estudo de Rao et al. (2004) Também é possível que uma estratégia transfusional mais liberal àqueles indivíduos mais idosos, e com menor reserva cardiovascular seja benéfica, como sugerido por Wu et al. (2001).

 

PRÁTICA TRANSFUSIONAL EM TERAPIA INTENSIVA

Com todas estas evidências, a prática transfusional dentro das terapias intensivas ainda é heterogênea. No Canadá, após uma investigação recente foi demonstrado que 85% dos médicos avaliados adotaram uma estratégia restritiva após o ensaio TRICC (29). A prática de UTIs da Europa ocidental, e dos EUA, no entanto, se manteve mais próxima a valores de hemoglobina mais elevados (85 g/l). No Brasil, a prática parece estar mais próxima à canadense. A hemoglobina pré-transfusional foi de 77 g/l nos pacientes críticos em geral, e cardiopatas tiveram o gatilho em torno de 80 g/l.

Até os anos 80, mesmo depois da publicação das diretrizes do Instituto Nacional de Saúde (National Institute of Health Consensus Conference on Perioperative Blood Transfusion) e das diretrizes do Colégio de Clínicos Americanos (American College of Physicians Guideline) orientando a uma prática transfusional não-focada em limiares laboratoriais, mas direcionada às necessidades fisiológicas e clínicas individualizadas, a maioria dos anestesiologistas prescreviam transfusões para atingir um valor de hemoglobina pré-operatório = 100 g/l .

Uma enorme variação na prática transfusional é observada até hoje. Seja na cirurgia geral ou dentro da terapia intensiva, muito de nossa prática baseada em gatilhos transfusionais é fundamentada no potencial beneficio em melhorar o transporte de oxigênio, e reduzir a injúria tecidual, mesmo diante de evidências conflitantes e dos riscos ligados às transfusões. Uma recomendação para a transfusão em diversas situações críticas foi recentemente publicada (quadro 23). Porém, é fundamental considerar-se os diversos espectros clínicos de cada doença, proporcionando-se uma abordagem terapêutica individualizada, dentro de cada cenário clínico.

 

Quadro 23. Orientações para prática transfusional.

Variáveis

Gatilho transfusional g/l

Meta (hemoglobina) g/l

Pacientes Críticos (sem sangramentos)

70

70 – 90

Pacientes Críticos com choque séptico (> 6 h)

70

70 – 90

Pacientes Críticos com choque séptico (< 6 h)

80 -100

100

Pacientes Críticos com doença cardíaca crônica

70

70 – 90

Pacientes Críticos com doença cardíaca aguda

80 -100

100

Fonte: adaptado de Hebert, Tinmouth e Corwin (2007).

 

CONCLUSÃO

A anemia é muito prevalente em diversos cenários clínicos e a prática transfusional ainda é extremamente variada dentro das terapias intensivas. Após quase 10 anos do ensaio do TRICC, ainda faltam evidências sobre limiar transfusional em pacientes de UTIs. Os pacientes com doença cardiovascular subjacente parecem apresentar um maior risco de morte do que aqueles sem doença cardiovascular para qualquer nível de hemoglobina.

Atualmente a transfusão provavelmente deve ser guiada por níveis de hemoglobina/hematócrito e por parâmetros fisiológicos individualizados. Recomenda-se que se administre 1 unidade de concentrado de hemácias por vez, checando-se a concentração plasmática da hemoglobina pré e pós transfusional e as respostas do paciente.

A mudança de comportamento de uma prática já incorporada há décadas, baseada mais em crenças do que em evidências é lenta e difícil. A incorporação das melhores evidências científicas ao exercício contínuo do cuidado de beira-leito requer ações além da divulgação, disseminação e treinamento constante. O entendimento da existência das barreiras individuais e institucionais para que as melhores evidências científicas, que aí estão, possam ser adequadamente compreendidas, traduzidas e adaptadas ao nosso dia-a-dia é fundamental. Talvez desta maneira, o conhecimento científico progressivamente incorporado ao nosso comportamento tenha melhores chances de se transformar em melhores práticas médicas.

 

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