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Intoxicação por Digitálicos

Autor:

Rodrigo Antonio Brandão Neto

Médico Assistente da Disciplina de Emergências Clínicas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP

Última revisão: 22/12/2017

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O uso de digitálicos em pacientes com condições cardíacas é descrito desde 1785, quando Sir William Withering descreveu o uso da planta digitalis purpúrea com sucesso no tratamento desses pacientes. A medicação é utilizada ainda hoje para o tratamento da disfunção ventricular esquerda e o controle de frequência em casos de fibrilação atrial.

A medicação tem uma janela terapêutica em comparação com a janela tóxica relativamente estreita, e achados como cefaleia, fraqueza, mal-estar, delírio ou confusão mental são sintomas comuns da intoxicação por digitálicos. Assim, um paciente idoso que toma digoxina e apresenta alterações no estado mental deve ser avaliado quanto à possibilidade de toxicidade pelo uso dos digitálicos.

Os glicosídeos cardíacos digitálicos são utilizados sobretudo para aumentar o inotropismo dos miócitos cardíacos, mas também afetam células no músculo liso vascular e no sistema nervoso simpático. A despolarização normal do miócito cardíaco começa com a abertura dos canais rápidos de sódio. O aumento resultante do sódio intracelular e a subsequente alteração no potencial da membrana em repouso abrem canais de cálcio com tensão ajustada.

O influxo inicial de cálcio induz a liberação adicional de cálcio do retículo sarcoplásmico, o que resulta em contração muscular. O sódio é, então, removido da célula, entre vários mecanismos, pela ATPase de sódio-potássio. Algum cálcio é removido da célula pelo anti-óxido de sódio-cálcio. Os glicosídeos cardíacos inibem reversivelmente a ATPase da bomba sódio-potássio, causando um aumento no sódio intracelular e uma diminuição do potássio intracelular.

O aumento do sódio intracelular evita que o cálcio seja retirado do miócito cardíaco, o que aumenta o cálcio intracelular. O aumento no cálcio intracelular aumenta o inotropismo. Os glicosídeos cardíacos também aumentam o tônus vagal, o que ocasiona a diminuição da condução através dos nós sinoatrial e atrioventricular.

O cálcio intracelular excessivo pode causar pós-despolarizações tardias, o que pode, por sua vez, levar a contrações prematuras e desencadear arritmias. Os glicosídeos cardíacos alentecem a repolarização dos átrios e dos ventrículos, diminuindo o período refratário do miocárdio, aumentando, assim, a automaticidade e o risco de arritmias.

Os efeitos dos glicosídeos cardíacos na vasoconstrição são variáveis. Os digitálicos podem reduzir as concentrações plasmáticas de renina em pacientes com insuficiência cardíaca descompensada avançada, causando vasodilatação periférica. Em pacientes sem insuficiência cardíaca, os digitálicos podem aumentar a vasoconstrição. Essa diferença é, provavelmente, devido à maior capacidade de resposta dos barorreceptores em pacientes com insuficiência cardíaca crônica.

A digoxina e a digitoxina são os dois principais glicosídeos cardíacos. Esses medicamentos possuem várias propriedades farmacológicas diferentes. A digitoxina é absorvida mais prontamente e tem menor volume de distribuição, maior meia-vida e maior ligação de proteínas. Além disso, ela é eliminada por via hepática, enquanto a digoxina é removida pelos rins.

Vários fatores podem influenciar a absorção, a distribuição ou a eliminação desses medicamentos. Assim, fatores como mudanças no volume de distribuição corporal devido à idade ou ao aumento do tecido adiposo, redução da ligação proteica, hipoalbuminemia e insuficiência renal resultam em diminuição da eliminação da medicação. O uso de medicações como os bloqueadores dos canais de cálcio (BCCs) que alteram atividades de glicoproteínas pode aumentar as concentrações séricas de digoxina.

 

Manifestações Clínicas

 

Na avaliação dos pacientes, é fundamental determinar o agente, o tempo de ingestão e outras medicações associadas, bem como as comorbidades e se o paciente já fazia uso crônico da medicação. Os indivíduos com toxicidade aguda pela digoxina tendem a ter sintomas mais bruscos do que aqueles com toxicidade crônica. Na intoxicação aguda por glicosídeos cardíacos, pode haver um período assintomático de várias horas antes do início dos sintomas.

O aumento do tônus vagal central induzido pelos digitálicos normalmente produz manifestações cardíacas, como bradiarritmias ou bloqueio atrioventricular. Os pacientes com intoxicação digitálica podem cursar praticamente com todos tipos de taquiarritmias ou bradiarritmias, sendo particularmente comum taquicardia atrial com bloqueio e torsades des pointes; entretanto, em geral, não ocorrem taquicardias supraventriculares de rápida resposta nesses casos.

As manifestações neurológicas, como fraqueza de membros, letargia ou confusão, podem ocorrer independentemente da pressão arterial. A descrição clássica da toxicidade de digoxina inclui xantopsias descritas como a visualização de halos verde-amarelos em torno de objetos. Contudo, os pacientes descrevem com mais frequência alterações não convencionais na sua visão de cor.

Sintomas gastrintestinais como anorexia, náuseas e vômitos são frequentes. Dor abdominal também pode ocorrer, e existem relatos de caso de isquemia mesentérica ocorrendo como complicação da intoxicação digitálica. Com frequência, os pacientes apresentam outras condições agudas concomitantes como gastroenterites, que levam à diarreia e à desidratação de disfunção renal, ocasionando a toxicidade pelos digitálicos. Essas complicações podem ser difíceis de diferenciar dos achados usuais que pacientes com intoxicação digitálica podem apresentar.

A hipercalemia é um achado importante na toxicidade aguda e pode se desenvolver, devido à inibição da ATPase sódio-potássio. Os níveis de digoxina obtidos com as primeiras 6 horas após uma ingestão aguda podem ser falsamente elevados, pois o nível representa um nível de redistribuição ao invés de refletir a quantidade ingerida. De um modo geral, a gravidade da toxicidade aguda correlaciona-se mais estreitamente com o grau de hipercalemia, e menos com os níveis iniciais de digoxinemia.

A toxicidade crônica é mais difícil de diagnosticar, com sintomas vagos e ocorrendo mais tipicamente nos pacientes idosos, sendo, muitas vezes, o resultado de interações medicamentosas ou da diminuição da função renal. Algumas das interações medicamentosas mais comuns que predispõem a toxicidade crônica de digoxina incluem BCCs, amiodarona, ß-bloqueadores, diuréticos, claritromicina, quinidina, procainamida e eritromicina.

Em particular, a interação entre digoxina e claritromicina contribui para o aumento das internações por toxicidade de digoxina em pacientes idosos. Na toxicidade crônica, os sintomas neurológicos costumam ser mais pronunciados, mas os gastrintestinais costumam mais discretos.

A diminuição da função renal e da massa corporal magra associada ao envelhecimento pode alterar a farmacocinética da digoxina, levando à toxicidade em doses normais terapêuticas. Essa população também pode possuir maior risco devido às doenças conviventes e à polifarmácia.

 

Diagnóstico e Exames Complementares

 

O diagnóstico de toxicidade de digoxina depende de muitas variáveis, incluindo história, exame físico e estudos laboratoriais; nenhum elemento isoladamente exclui ou confirma o diagnóstico. Em pacientes com insuficiência cardíaca e função renal normal, as doses diárias de digoxina são, em geral, entre 125 e 250mg. A toxicidade de digoxina pode ocorrer com uma única ingestão de 1 a 2mg em um adulto, e foram relatadas mortes após uma ingestão aguda de 10mg em um adulto e de 4mg em uma criança.

O diagnóstico diferencial inclui outros medicamentos que podem induzir arritmias, tais como BCCs, ß-bloqueadores, antiarrítmicos de classe IA (procainamida e quinidina), antiarrítmicos de classe IC (flecainida e encainida), clonidina e intoxicação por organofosfato ou carbamatos. A síndrome do nó sinusal, com a sua combinação de arritmias supraventriculares e blocos de condução cardíaca, também pode imitar a toxicidade da digoxina. Distúrbios hidroeletrolíticos como a hipercalemia também podem causar bradicardia e condução cardíaca anormal, e devem ser considerados no diagnóstico diferencial.

Quatro achados eletrocardiográficos específicos são vistos com níveis terapêuticos de digoxina e não são patognomônicos de toxicidade: mudanças de onda T, como achatamento ou inversão, encurtamento do intervalo QT, aparência “escavada” do segmento ST com depressão do segmento ST e aumento da amplitude da onda U, o que é denominado de segmento ST em colher. Em pacientes com suspeita de intoxicação digitálica, é recomendada a realização séria da de eletrocardiograma de 12 derivações.

Em intoxicações agudas, os níveis séricos de potássio e digoxina podem fornecer informações de diagnóstico úteis. Conforme observado, a intoxicação aguda da bomba de ATPase de sódio e potássio pode resultar em níveis de potássio sérico marcadamente elevados, e o nível de potássio sérico é um melhor indicador de toxicidade dos órgãos e um indicador prognóstico melhor do que o nível sérico de digoxina nessa circunstância.

A concentração sérica de digoxina deve ser realizada; em intoxicações agudas, deve-se proceder à dosagem sérica de digoxina com até 6 horas da ingestão e, em casos de toxicidade crônica, a digoxinemia, deve ser dosada na admissão. Os níveis de digoxina terapêutica normais são de 0,5 a 2,0ng/mL, com níveis tóxicos correspondentes acima de 2,5ng/mL.

Devido a uma fase de distribuição relativamente lenta, os níveis elevados de digoxina após uma ingestão aguda recente nem sempre são um indicador preciso da concentração nos locais receptores. O nível da digoxina sérica não deve ser o único fator no estabelecimento do diagnóstico de toxicidade da digoxina.

O potássio sérico deve ser mensurado em todos os pacientes; em geral, os níveis são normais ou baixos devido à terapia diurética concomitante, mas podem ser elevados em pacientes com disfunção renal. A hipercalemia é um marcador de toxicidade pelos digitálicos, e a severidade dela se correlaciona com a gravidade da intoxicação digitálica.

Em pacientes com uso crônico de digitálicos, a hipocalemia é mais preocupante; na vigência dela, aumenta a chance do desenvolvimento de intoxicação digitálica. Outros eletrólitos como sódio, cálcio, magnésio e fósforo também devem ser dosados. A função renal influencia a toxicidade pelos digitálicos, e deve ser avaliada em todos pacientes. A glicemia capilar também deve ser verificada em todos os casos.

 

Tratamento

 

O manejo de um paciente com intoxicação por digoxina inclui cuidados gerais de suporte, além do tratamento específico da intoxicação. Assegurar vias aéreas, bem como a estabilidade hemodinâmica, é prioridade, assim como iniciar a monitorização cardiorrespiratória e estabelecer acesso venoso em todos os pacientes.

No caso dos pacientes com ingestões intencionais ou acidentais que não apresentam sintomas, deve-se lembrar que existem complicações fatais de toxicidade que ocorrem horas após a ingestão. Naqueles com arritmias com risco de vida, deve-se identificar e corrigir rapidamente condições como hipóxia, hipoglicemia, hipovolemia e anormalidades eletrolíticas. O magnésio pode causar irritabilidade ventricular, observada com toxicidade cardíaca e glicosídica.

A descontaminação gastrintestinal é considerada, no máximo, terapia adjuvante na intoxicação digitálica. O carvão ativado em dose de 1g/kg pode ser utilizado em apresentações no departamento de emergência (DE) de até 2 horas após a ingestão. Não é recomendado o uso de lavagem gastrintestinal nesses pacientes. Existem relatos do uso de colestiramina, 4mg, 2x/dia, em alguns pacientes com melhora dos sintomas de intoxicação. Os agentes catárticos, a diurese forçada, a hemodiálise e a hemoperfusão não têm nenhum papel para melhorar a eliminação dos digitálicos.

Em pacientes com bradicardia significativa com instabilidade hemodinâmica, deve-se usar a atropina em dose inicial, em bolo de 0,5 a 1mg, podendo ser repetido em até 5 minutos em dose máxima de 3mg/dia. Outra opção é o uso de estimulação cardíaca transvenosa. Em pacientes em uso de marca-passo, pode ser difícil o diagnóstico de intoxicação digitálica.

O tratamento específico da intoxicação digitálica é com os fragmentos de anticorpos específicos para digoxina (digoxina-Fab). Esses anticorpos são o tratamento de escolha em intoxicação aguda com hipercalemia (potássio >6.0mEq/L) e em toxicidade aguda ou crônica com qualquer arritmia potencialmente letal.

A hipercalemia não é tipicamente a causa da morte, um preditor de intoxicação grave e aumento da mortalidade. O tratamento da hipercalemia induzida por digoxina com insulina, dextrose, bicarbonato de sódio ou resinas de troca não reduz a mortalidade. Os pacientes hipotensos devem receber ressuscitação volêmica com cristaloides.

A dose de digoxina-Fab depende das circunstâncias clínicas dos pacientes. Logo após ingestão aguda grave de digoxina, recomenda-se o uso de 10 unidades de digoxina-Fab em adultos e 5 unidades em crianças. Uma unidade se liga, aproximadamente, a 0,5mg de digoxina. São indicações para seu uso:

               Arritmias com risco de vida: taquicardia ventricular ou fibrilação ventricular; bloqueios atrioventriculares avançados; bradicardia sintomática;

               Hipercalemia: K >5-5,5mEq/L;

               Evidência de disfunção de órgão: insuficiência renal aguda, hipoperfusão, confusão mental.

 

A dose neutralizadora de digoxina-Fab é calculada da seguinte forma:

               Carga corporal de digoxina (miligramas) = 0,8 × quantidade suspeita ingerida (mg);

               Carga corporal de digoxina (mg) = concentração sérica de digoxina (ng/mL) × 5,6L/kg × peso (kg)/1.000.

Um frasco (cerca de 40 miligramas) de digoxina-Fab neutraliza 0,5 miligramas de digoxina ingerida. Em um grupo de pacientes gravemente intoxicados após a administração de digoxina-Fab, 90% apresentaram reversão ou melhora significativa na arritmia com risco de vida. Na maioria dos casos, a melhora clínica ocorre dentro de 1 hora.

Os pacientes em parada cardíaca tiveram uma sobrevivência de 50% ao receber digoxina-Fab durante a ressuscitação, o que é bem melhor do que a sobrevivência histórica com o tratamento com terapias convencionais. Devido à reatividade cruzada com outros glicosídeos cardíacos, o Fab de digoxina também é benéfico para intoxicações por digitoxina, embora muitas vezes sejam necessárias doses mais elevadas.

A hipocalemia pode desenvolver-se rapidamente à medida que a toxicidade da digoxina é revertida. Reações de hipersensibilidade suaves e agudas, incluindo erupção cutânea, rubor e inchaço facial, foram relatadas. Não foram observadas incidências de doença no soro ou anafilaxia, mesmo em pacientes com administração repetida.

Os níveis séricos totais de digoxina obtidos após administração de digoxina-Fab têm pouca correlação com a toxicidade clínica. Como a maioria dos testes de laboratório não distingue entre a digoxina ligada e a não ligada a anticorpos, os níveis séricos totais obtidos após administração de digoxina-Fab podem aumentar 10 a 20 vezes. No entanto, como o complexo Fab-digoxina não é farmacologicamente ativo, esse nível aumentado não se correlaciona com a toxicidade clínica. O complexo Fab-digoxina é eliminado pela excreção renal.

A administração de sais de cálcio na hipercalemia induzida por glicosídeo cardíaco é controversa, mas existem alguns relatos de caso com resultados positivos, e essa terapia pode ser considerada em casos refratários. É recomendada uma observação no DE em pacientes com níveis de digoxina e potássio em série com qualquer ingestão aguda confirmada. Os assintomáticos devem ser observados até o nível sérico de digoxina diminuir em medidas em série e o nível de potássio permanecer normal. Os pacientes com sinais de toxicidade ou história de uma dose grande ingerida (>6mg em adultos) devem ser admitidos em uma unidade monitorizada.

 

Referências

 

1-Levine M, Skolinik AB. Digitalis Glycosides in Tintinalli Emergency Medicine 2016.

2-Lip GY, Metcalfe MJ, Dunn FG. Diagnosis and treatment of digoxin toxicity. Postgrad Med J 1993; 69:337.

3-Thacker D, Sharma J. Digoxin toxicity. Clin Pediatr (Phila) 2007; 46:276.

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