Autores:
Amanda Francisco Martins
Médica Assistente da Disciplina de Nefrologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP
Regina Abdulkader
Médica Assistente do Laboratório de Fisiopatologia Renal da Disciplina de Nefrologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP
Doutora em Fisiologia pelo Instituto de Ciências Biomédicas da USP
Última revisão: 30/05/2010
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A insuficiência renal aguda (IRA) é uma síndrome caracterizada pela deterioração abrupta e persistente da função renal, que resulta na incapacidade dos rins em excretar escórias nitrogenadas e em manter a homeostase hidroeletrolítica. Apesar de ser uma síndrome de prevalência e morbimortalidade elevadas, ainda hoje não há consenso em relação ao diagnóstico da IRA e classificação de gravidade.
Um dos principais problemas para o diagnóstico da IRA é a ausência de marcadores sensíveis e específicos de função renal. A creatinina sérica é o exame mais utilizado para avaliação da função renal, mas tem algumas desvantagens, pois se eleva acima dos limites normais apenas quando a filtração glomerular (FG) encontra-se abaixo de 50% e é dependente de massa muscular, idade, sexo e raça.
No paciente ambulatorial, diversas outras formas de medida de FG mais acuradas estão disponíveis, como a depuração de creatinina ou uréia endógenas ou mesmo fórmulas que estimam a FG por meio da creatinina sérica, mas que consideram outras variáveis como sexo, idade, raça, peso corpóreo e albumina sérica (por exemplo, equação de Cockcroft-Gault, tabela 1).
Tabela 1: equação de Cockcroft-Gault
Clearance estimado de creatinina = (140 – idade) x peso / 72 x creatinina
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Obs: O valor obtido deve ser multiplicado por 0,85 para o cálculo em mulheres
No entanto, para o paciente com IRA, principalmente no ambiente de unidade de terapia intensiva (UTI), há limitações para a aplicação dessas fórmulas: por exemplo, a creatinina sérica não tem valor estável durante a IRA, pode ser normal na presença de queda significativa da FG em indivíduos com pouca massa corpórea, ou pode ter sua dosagem alterada por interferentes. A uréia, outro marcador comumente utilizado, pode não refletir adequadamente a queda da FG quando se eleva, pois isto também ocorre quando aumenta o catabolismo protéico (em infecções, sangramentos em trato digestivo, uso de corticóides, ou por aporte nutricional inadequado).
Na prática, apesar das limitações acima citadas, uma definição bastante usada para o diagnóstico de IRA é a elevação de 0,5 mg/dl da creatinina sérica para pacientes cujo valor basal seja inferior ou igual a 1,5 mg/dl, e a elevação de 25% em seus valores para aqueles cuja creatinina sérica basal seja superior a 1,5 mg/dl.
A creatinina, apesar de suas limitações no diagnóstico de IRA, é um excelente parâmetro para o acompanhamento da função renal, uma vez estabelecido esse diagnóstico, pois variações em seus valores representam variações da FG. Há inclusive estudos mostrando que pequenas elevações nos níveis de creatinina sérica têm correlação positiva com aumento na mortalidade dos pacientes.
As estimativas da incidência da IRA variam de acordo com a população estudada e com os parâmetros utilizados para seu diagnóstico. Estudos epidemiológicos apontam a incidência de IRA no ambiente hospitalar entre 1,9% e 7%. Quando consideradas os pacientes internados em UTIs, 5% a 20% dos pacientes desenvolvem IRA. A IRA na UTI geralmente apresenta etiologia multifatorial, sendo a sepse grave ou o choque séptico a causa principal em mais da metade desses pacientes. A IRA ocorre em 19% dos pacientes com sepse, em 23% daqueles com sepse grave e em 51% dos pacientes com choque séptico.
O desenvolvimento de IRA intra-hospitalar leva à diminuição de sobrevida dos pacientes, uma vez que é um fator independente para o óbito, ou seja, a IRA é causa de óbito e não apenas uma comorbidade associada. A mortalidade da IRA em pacientes sem falência de outros órgãos varia entre 7% e 23%. Já quando ocorre em pacientes críticos associa-se a taxas de mortalidade de 50% a 83%.
Classicamente, a IRA é classificada como pré-renal, renal ou pós-renal (tabela 2).
A IRA pré-renal ocorre como uma resposta fisiológica do rim à diminuição na perfusão sangüínea renal, seja por hipovolemia absoluta (por exemplo, sangramentos, diarréia) ou hipovolemia relativa (por exemplo, sepse, insuficiência cardíaca, hepatopatia). A IRA pré-renal é a causa mais comum de IRA. Em resposta às alterações na pressão de perfusão renal, ocorre a auto-regulação do fluxo sangüíneo renal e da FG mediante mecanismos neuro-humorais que levam à vasodilatação das arteríolas aferentes e vasoconstrição das eferentes. Alterações na perfusão renal que suplantem a auto-regulação e/ou o uso de drogas que interfiram nesse mecanismo (como antiinflamatórios não-hormonais e inibidores da enzima conversora de angiotensina – ECA) culminam com a redução da FG e conseqüente IRA pré-renal. Geralmente reversível e sem representação histológica, pode progredir para necrose tubular aguda (NTA) isquêmica se não for tratada adequadamente.
A IRA renal pode ter origem isquêmica ou nefrotóxica. A principal causa de IRA renal é a NTA que, em conjunto com a IRA pré-renal, é responsável por aproximadamente 75% dos casos de IRA. A sua patogênese envolve alterações do endotélio, com conseqüente vasoconstrição, e da estrutura e composição bioquímica das células tubulares, resultando em alteração de sua função e morte celular, tanto por necrose quanto apoptose. Uma vez instalada, resulta em descamação do epitélio tubular, obstrução intraluminal e vazamento transtubular do filtrado glomerular. Todo esse processo está associado a recrutamento e ativação de células inflamatórias. A recuperação da função renal requer a depuração das células tubulares inviáveis e de debris, além de regeneração e reparo das células viáveis.
A IRA pós-renal (após a formação do filtrado glomerular) é classificada como intra-renal (obstrução do fluxo do fluido tubular) ou extra-renal. A precipitação intratubular de cristais insolúveis ou proteínas leva à obstrução intratubular, aumentando assim a pressão intratubular que se opõe à pressão hidrostática glomerular, com conseqüente diminuição da pressão de ultrafiltração e redução na FG. De forma semelhante, a obstrução das vias urinárias em qualquer nível extra-renal (pelve, ureteres, bexiga e uretra) pode levar a IRA pós-renal. Deve-se lembrar que, no caso de obstrução de pelve ou ureter, somente ocorrerá IRA quando a obstrução for bilateral ou quando ocorrer em rim único funcionante. A reversibilidade da IRA pós-renal depende da duração e da intensidade da obstrução, o que aponta para a necessidade de tratar rapidamente.
Tabela 2: Causas de IRA pré-renal, renal e pós-renal
Alteração primária |
Exemplos clínicos | ||
IRA pré-renal |
Hipovolemia absoluta |
Hemorragias, perdas cutâneas (queimaduras e sudorese profusa), perdas gastrointestinais (diarréia e vômitos), perdas renais (uso de diuréticos e descompensação diabética) | |
Hipovolemia relativa |
Insuficiência cardíaca, insuficiência hepática, anafilaxia e sepse | ||
IRA renal |
Vascular |
Microvascular |
Vasculites, microangiopatia, hipertensão maligna, eclâmpsia, síndrome hemolítico urêmica, contraste iodado e uso de drogas (anfotericina B, ciclosporina, tacrolimus, antiinflamatórios e inibidores da ECA) |
Macrovascular |
Oclusão de artérias renais bilateralmente, doenças da aorta | ||
Glomerular |
Glomerulonefrite aguda, associada ou não a doenças sistêmicas | ||
Inflamação túbulo-intersticial causada por drogas (por exemplo, penicilina, cefalosporinas, ciprofloxacino, rifampicina, alopurinol, diuréticos tiazídicos, furosemida), infecções e radiação | |||
NTA |
Isquêmica |
Hipotensão, sepse, baixo débito cardíaco | |
Proteínas endógenas |
Mioglobinúria (rabdomiólise), hemoglobinúria (reação transfusional, crise falciforme, coagulação intravascular disseminada), rim do mieloma | ||
Nefrotoxinas |
Antibióticos (aminoglicosídeos, anfotericina B), cisplatina, ciclosporina, tacrolimus e contrastes iodados | ||
IRA pós-renal |
Obstrução extra-renal |
Obstrução ureteral (tem de ser bilateral para causar IRA) |
Cálculos, coágulos, fibrose retroperitoneal, tumores, compressão extrínseca |
Obstrução uretral |
Hiperplasia prostática, prostatite, coágulo, cálculo, neoplasias, corpo estranho | ||
Obstrução intra-renal |
Precipitação intratubular de cristais: ácido úrico (síndrome da lise tumoral) ou drogas (aciclovir, sulfonamidas, metotrexate e indinavir) |
Didaticamente, podemos dividir os achados clínicos entre aqueles relacionados à causa de base da IRA e que, portanto, são fundamentais para que se elabore uma hipótese diagnóstica, e aqueles relacionados à insuficiência renal per se.
Tabela 3: Dados de história e exame físico sugestivos da causa de IRA
Dados de história e exame físico |
Causas possíveis |
Hipotensão, choque, sangramentos, sede, mucosas secas, perda abrupta de peso, queimaduras, diarréia, uso de diuréticos |
IRA pré-renal por hipovolemia absoluta |
Turgência jugular e ritmo de galope, edemas (disfunção cardíaca). Ascite volumosa e outros sinais de hepatopatia, síndromes infecciosas ou choque séptico |
IRA pré-renal por má perfusão/hipovolemia relativa |
História de trauma com possível componente de necrose muscular (rabdomiólise), uso de medicamentos (como os aminoglicosídeos), instabilidade hemodinâmica, hipotensão arterial, desidratação grave |
NTA |
Sinais de hepatopatia, ascite volumosa |
Peritonite bacteriana espontânea ou síndrome hepato-renal |
Hipertensão |
Síndrome nefrítica, hipertensão maligna ou pela própria IRA |
História de doenças sistêmicas, urina espumosa, artrite, artralgias, exantema, fotossensibilidade, emagrecimento, neuropatias periféricas, hematúria microscópica, uveíte, drogas ilícitas, hepatite B, hepatite C, HIV. Ao exame pode haver artrite, úlceras orais, lesões cutâneas, edema, derrames cavitários |
IRA por causas glomerulares (por exemplo, lúpus, vasculites, endocardite) |
Uso de medicações (antibióticos, alopurinol), infecções recentes. Pode haver febre e exantema |
Nefrite intersticial |
Doença valvar, prótese valvar ou usuário de drogas endovenosas. Pode haver novo sopro cardíaco |
Endocardite |
Rash ou púrpura |
Nefrite intersticial, vasculites, lúpus, ateroembolismo, endocardite |
Sintomas respiratórios e em seios da face |
Vasculites (como na granulomatose de Wegner) |
Dor óssea em idoso |
Mieloma múltiplo ou câncer de próstata |
Trauma |
Rabdomiolise ou hipovolemia por sangramento |
Esclerose múltipla, AVC, outras doenças neurológicas ou diabetes |
Bexiga neurogênica |
Cirurgia ou procedimento recente |
NTA por isquemia renal, ateroembolismo ou endocardite |
Medicações: inibidores de enzima conversora de angiotensinao (IECA), antiinflamatórios, antibióticos, aciclovir, contrastes endovenosos |
Diminuição da perfusão renal, NTA ou Nefrite intersticial alérgica |
Sintomas de prostatismo, hematúria macroscópica, história de litíase ou tumores ginecológicos. Pode haver anúria, distensão vesical, massas pélvicas e alterações no exame ginecológico ou da próstata |
IRA pós-renal por obstrução extra-renal |
Uso de medicações (indinavir, aciclovir, metotrexate, sulfas) ou quimioterapia (síndrome de lise tumoral) |
IRA pós-renal por obstrução intra-renal |
A IRA é habitualmente acompanhada por redução de diurese. A oligúria é definida como diurese inferior a 400 ml/24h e pode anteceder as alterações dos marcadores laboratoriais de FG. Quando há manutenção da diurese a despeito da perda de função, denominamos a IRA como não-oligúrica (comum na NTA nefrotóxica). A instalação súbita de anúria, definida como diurese inferior a 50 ml/24h, é incomum e sugere a ocorrência de obstrução pós-renal total, trombose arterial bilateral, trombose venosa bilateral ou necrose cortical.
O quadro clínico da IRA é muito variável. Praticamente todos os órgãos e sistemas do organismo podem ser acometidos como conseqüência de uremia, hipervolemia ou distúrbios hidroeletrolíticos.
A elevação da uréia e de inúmeras outras toxinas associa-se à disfunção celular de diversos sistemas:
neurológico: a encefalopatia urêmica é uma manifestação comum da IRA. Varia entre formas sutis, como alterações intelectuais e de memória, até quadros mais graves, com a presença de alterações sensoriais, hiper-reflexia, tremores, mioclonias, convulsões, mal epiléptico e coma;
cardiovascular: a uremia pode gerar pericardite, com risco de tamponamento e piora de função cardíaca, entidade conhecida como miocardiopatia urêmica. Somam-se aqui as complicações congestivas e hipertensivas;
hematológico: equimoses e outros sangramentos podem ocorrer pela redução da adesividade plaquetária. A anemia também é freqüente e secundária à deficiência da eritropoetina e diminuição da vida média das hemácias;
gastrointestinal: anorexia progressiva, náuseas e vômitos são os sintomas mais comuns da IRA;
respiratório: pleurite e pneumonite podem ocorrer, sendo esta última mais rara. Outra manifestação comum é a respiração de Kusmaull, em função da acidose.
Com a redução da diurese, passa a ocorrer um balanço positivo diário de água e sódio, resultando em ganho de peso progressivo, edema e congestão. Um dos sinais mais comuns da hipervolemia é a hipertensão, que pode chegar a valores extremos, gerando quadros de emergências hipertensivas. Os quadros congestivos podem ser muito graves, causando edema agudo de pulmão e insuficiência respiratória aguda. Além disso, como é comum a ocorrência de IRA em pacientes cardiopatas e como a própria uremia piora o desempenho cardíaco, as complicações congestivas são extremamente comuns. A hipervolemia também pode ocorrer como resultado da manutenção de uma expansão intensa, que é recomendada somente para o tratamento precoce da sepse.
A IRA cursa com uma série de alterações eletrolíticas, sendo as mais comuns a hiponatremia, com risco de alterações sensoriais; a hipercalemia, com risco de arritmias cardíacas; a acidose metabólica, responsável pelo surgimento de náuseas, piora da hipercalemia e risco de arritmias; hiperfosfatemia, hipocalcemia e hiperuricemia, à semelhança do que observamos em nefropatias crônicas; e, mais raramente, a hipercalcemia (a IRA por rabdomiólise pode cursar inicialmente com hipocalcemia e, posteriormente, com hipercalcemia).
O diagnóstico etiológico da IRA é essencialmente clínico, mas alguns exames complementares são úteis na diferenciação entre as diferentes etiologias possíveis. Dentre os mais importantes, encontram-se a urinálise com análise de sedimento urinário, o cálculo das frações de excreção de sódio e uréia, os exames de imagem e a biópsia renal.
O exame de urina é extremamente simples e deve ser solicitado rotineiramente em todos os casos de IRA, principalmente para afastar causas glomerulares e túbulo-intersticiais (tabela 4).
Tabela 4: Análise do sedimento urinário na IRA
sedimento urinário |
Causas possíveis |
Normal |
Causas pré e pós-renais |
Hematúria, dismorfismo eritrocitário, cilindros hemáticos, proteinúria |
Glomerulopatias, vasculites, microangiopatia trombótica |
Leucocitúria |
Nefropatia obstrutiva, pielonefrite, Nefrite intersticial |
Eosinofilúria |
Nefrite intersticial alérgica, ateroembolismo |
Cilindros granulares pigmentados, células tubulares |
NTA, mioglobinúria, hemoglobinúria |
Cristalúria |
Drogas, ácido úrico |
Um parâmetro útil e simples na diferenciação de IRA renal de IRA pré-renal é a relação uréia/creatinina. Na IRA pré-renal ocorre aumento na reabsorção proximal de uréia, o que gera uma desproporção entre a elevação de uréia e creatinina no plasma (a relação uréia/creatinina normal de aproximadamente 20 pode atingir um valor acima de 40). No entanto, pode haver muitos interferentes nessa relação, pois a relação uréia/creatinina pode se elevar também em estados hipercatabólicos, como em infecções, após cirurgias, em pacientes em uso de corticóide (principalmente se em dose elevada) ou em sangramentos de trato digestivo. Entretanto, alguns fatores podem reduzir a relação uréia/creatinina e mascarar estados de hipovolemia, como diminuição na produção da uréia (jejum prolongado, hepatopatia avançada), aumento na produção de creatinina (rabdomiólise), diminuição na eliminação da creatinina (cimetidina, trimetoprim) e presença de agentes que interfiram na dosagem de creatinina (cetonas, metildopa, ácido ascórbico).
As frações de excreção de sódio e uréia são úteis na diferenciação de IRA renal de IRA pré-renal. Como na IRA pré-renal a função tubular está preservada, ocorre intensa reabsorção de sódio e uréia, principalmente em túbulo proximal, em resposta à hipovolemia. Assim na IRA pré-renal as frações de excreção dessas duas substâncias estão diminuídas (tabela 5) enquanto na NTA elas estão aumentadas. Vale notar que a fração de excreção de sódio na IRA pré-renal pode estar aumentada pelo uso de diuréticos ou em situações de depleção volêmica com bicarbonatúria, como vômitos e perdas prolongadas por sonda gástrica aberta. Nessas circunstâncias, podemos utilizar a fração de excreção de uréia, que não sofre influência de diuréticos ou bicarbonatúria. Alguns estudos sugerem que a fração de excreção de uréia seja um índice mais sensível e específico para o diagnóstico de IRA pré-renal do que a fração de excreção do sódio.
Tabela 5: Cálculo de frações de excreção de sódio e uréia
fração de excreção de sódio (FENa) = [Sódiourinário / Sódio sérico x creatininaurinária / creatininasérica] X 100 Normal: 0,5 a 1% |
fração de excreção de uréia (FEU) = [Uréiaurinária / Uréiasérica x creatininaurinária / creatininasérica] X 100 Normal: >35% |
Na tabela 6, verificamos como os índices urinários podem ajudar na diferenciação da IRA renal de IRA pré-renal.
Tabela 6: Diagnóstico diferencial da IRA baseado em índices urinários
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IRA pré-renal |
IRA renal (exemplo: NTA) |
Relação U/Cr* |
> 40:1 |
< 40:1 |
UNa (mEq/l) * |
< 20 |
> 20 |
FENa (%)* |
< 1 |
> 1 |
FEUréia (%)* |
< 35 |
> 50 |
Osmolalidade U (mOsm/kg) |
> 500 |
250-500 |
> 1.020 |
1.010-1.020 | |
sedimento urinário |
Cilindros hialinos |
Cilindros granulares |
Relação U/Cr = relação uréia/creatinina séricas; UNa= sódio urinário; FENa= fração de excreção do sódio; FEUréia= fração de excreção da uréia
Exames de imagem, em especial a ultra-sonografia, são importantes ferramentas para o diagnóstico diferencial da IRA. Por meio da ultra-sonografia pode-se confirmar ou afastar o diagnóstico de IRA por obstrução extra-renal ou a presença de litíase. Rins hiperecogênicos com tamanhos normais podem sugerir Nefrite intersticial aguda ou pielonefrite. Rins com tamanhos reduzidos, alteração da camada córtico-medular e hiperecogênicos são compatíveis com doença renal crônica. A tomografia computadorizada sem contraste pode ajudar na avaliação de hidronefrose quando a causa não for bem identificada ao ultra-som abdominal. O eco-Doppler de artérias renais, ressonância magnética nuclear ou arteriografia são necessários para o diagnóstico de obstrução arterial renal.
A biópsia renal está indicada em casos de IRA de etiologia incerta, suspeita de glomerulonefrites, Nefrite intersticial e em casos de IRA prolongada (definida como a não-recuperação da função renal dentro de 4 a 6 semanas após o diagnóstico, sem que ocorram novos insultos renais nesse período).
Outros exames podem ajudar no diagnóstico diferencial da IRA, resumidos na tabela 7.
Tabela 7: Alterações em exames laboratoriais que podem sugerir a causa de IRA
Alteração no exame laboratorial |
Possível causa |
Aumento de CPK e mioglobinúria |
rabdomiólise |
Aumento de ácido úrico |
Litíase por hiperuricemia, neoplasia, síndrome de lise tumoral |
Aumento de cálcio |
Neoplasia |
Pico monoclonal em eletroforese de proteína |
Mieloma múltiplo |
HIV positivo |
|
ASLO positivo (antiestreptolisina O) |
Glomerulonefrite pós-estreptocócica |
Evidências de hemólise (esquisócitos em sangue periférico, aumento de DHL, aumento de bilirrubina indireta, diminuição de haptoglobina), trombocitopenia |
Síndrome hemolítico-urêmica, púrpura trombocitopênica trombótica |
Eosinofilúria |
Nefrite intersticial alérgica |
FAN e anti-DS-DNA positivos |
Lúpus eritematoso sistêmico |
Complemento baixo |
Lúpus eritematoso sistêmico, endocardite, Glomerulonefrite pós-infecciosa |
Anticorpo antimembrana basal positivo |
Síndrome de Goodpasture |
ANCA positivo |
Granulomatose de Wegner |
Hemoculturas positivas, alterações valvares em ecocardiograma transesofágico ou transtorácico |
Endocardite |
PSA aumentado |
Câncer de próstata |
O melhor tratamento da IRA é a sua prevenção. Como a IRA tem impacto significativo sobre a morbimortalidade do paciente, é muito importante que o clínico e o intensivista estejam atentos às medidas preventivas, habitualmente simples. Essas medidas baseiam-se na manutenção da volemia, otimização de débito cardíaco e não-utilização de drogas nefrotóxicas.
Deve-se dar especial atenção a pacientes pertencentes a grupos de risco para desenvolvimento de IRA: idosos, desnutridos, cardiopatas, hepatopatas, diabéticos, portadores de neoplasia maligna, disfunção renal crônica ou estenose de artéria renal conhecida. Vale atentar que um valor de creatinina sérica considerado “normal”, principalmente nesses pacientes, não significa que a FG esteja preservada, já que o valor da creatinina depende de massa muscular, idade, sexo e raça do paciente, além de se elevar somente quando a FG estiver 50% abaixo do normal. Na tabela 8 são citadas as medidas preventivas gerais para evitar IRA, que devem ser consideradas em todos os pacientes internados, e na tabela 9 são citadas as medidas preventivas de IRA em situações específicas.
Tabela 8: Medidas gerais para prevenção de IRA
A prescrição médica deve ser revista constantemente e a administração de drogas sabidamente nefrotóxicas evitada sempre que possível. A dose de todas as medicações prescritas deve ser corrigida de acordo com a FG medida ou calculada. |
Quando o uso de drogas nefrotóxicas é indispensável, devemos corrigir a dose de acordo com a função renal do paciente. Algumas drogas podem ter sua concentração plasmática monitorizada. |
O uso de dopamina em dose “renal” (1-3 mcg/kg/min), ainda utilizado em alguns centros, não é recomendado. Diversos estudos provaram que seu uso não reduz a morbidade ou mortalidade nesses pacientes, e alguns mostraram que até pode aumentá-las. |
O uso de diuréticos na conversão de IRA oligúrica para não-oligúrica é controverso. Não há evidências de que eles diminuam a mortalidade ou morbidade pela IRA, embora facilitem o manuseio volêmico desses pacientes. |
Tabela 9: Medidas preventivas de IRA em situações específicas
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Medida preventiva |
Procedimentos contrastados |
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Peritonite bacteriana espontânea |
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Lise tumoral |
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rabdomiólise |
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Anfotericina B |
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Aminoglicosídeos |
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Aciclovir |
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Sulfonamidas |
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Metotrexate |
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O conhecimento da etiologia da IRA permite que sejam adotadas medidas específicas para seu tratamento, com o intuito de reverter o mecanismo gerador da lesão e, assim, estabelecer a recuperação da função renal. Algumas medidas gerais e de suporte sempre devem ser aplicadas, independentemente da etiologia da IRA.
IRA pré-renal: o tratamento consiste basicamente na reposição volêmica, na otimização hemodinâmica e nas medidas gerais citadas acima.
IRA pós-renal renal: deve ser tratada com o procedimento desobstrutivo adequado, o qual deve ser realizado rapidamente. A IRA é, em geral, prontamente reversível quando a desobstrução é feita em horas a poucos dias. Entretanto, obstruções prolongadas, de semanas a meses, podem determinar lesão crônica, de caráter irreversível. Devemos prestar particular atenção à fase poliúrica da recuperação da IRA pós-renal, quando há risco de distúrbios eletrolíticos, desidratações importantes e IRA pré-renal, com nova piora da função.
IRA renal: o tratamento depende da etiologia. O tratamento de vasculites e glomerulopatias é complexo e baseia-se no uso de imunossupressores e corticosteróides. Em casos de Nefrite intersticial aguda, além da suspensão da droga causadora, a administração de corticosteróide pode ser útil. A dose e o tempo de tratamentos são discutíveis, mas a maioria dos autores utiliza 1 mg/kg de prednisona por período ao redor de um mês, seguido de desmame total da droga. O uso do corticóide deve ser ponderado em idosos e diabéticos, podendo ser utilizado em doses menores. O ateroembolismo não tem tratamento específico, mas deve-se sempre que possível suspender os anticoagulantes. O uso de estatinas parece estar associado à melhor recuperação da função renal nesses casos. A IRA relacionada à síndrome hepato-renal deve ser inicialmente tratada com suspensão de diuréticos, uso de albumina e suspensão de drogas nefrotóxicas. Outro recurso atualmente disponível é a terlipressina, droga com ação vasoconstritora sobre a região esplâncnica. No entanto, o tratamento definitivo para a síndrome hepato-renal é o transplante hepático.
Apesar de ainda haver muita discussão na literatura, para a IRA ainda não existe consenso sobre o momento ideal para o início da diálise, o melhor método dialítico a ser utilizado e a dose (adequação) de diálise a ser administrada. Ainda assim, sabemos que o procedimento dialítico não deve ser iniciado tardiamente, quando as complicações urêmicas e congestivas já estão avançadas, expondo o paciente a riscos desnecessários. As indicações clássicas para o início de diálise são: edema pulmonar não responsivo a tratamento conservador; hipercalemia não responsiva a tratamento conservador; acidose metabólica não responsiva a tratamento conservador; uremia sintomática (encefalopatia e pericardite).
No entanto, quando a IRA já está instalada e não há mais medidas de resgate da função que possam ser realizadas, o procedimento dialítico deve ser iniciado sem demora diante de sintomas e sinais urêmicos e congestivos. No paciente em ambiente de UTI, essa discussão ganha importância particular. Apesar de não haver nenhum estudo que comprove que a instalação de diálise mais precocemente melhore a sobrevida de pacientes críticos, diversos trabalhos sugerem que o início tardio da substituição renal assim como doses insuficientes de diálise tenham impacto clínico sobre a mortalidade.
A escolha do método dialítico deve considerar o quadro clínico, o sexo e o tamanho do paciente e, principalmente, a presença de instabilidade hemodinâmica. Em ambiente de UTI, adiante da instabilidade hemodinâmica, damos preferência aos métodos contínuos (hemodiálise contínua, hemofiltração, hemodiafiltração ou hemodiálise estendida). Novamente, não há comprovação de superioridade de nenhum método em relação ao outro. Reserva-se o uso da hemofiltração e da hemodiafiltração para os quadros sépticos ou inflamatórios, na tentativa de se remover moléculas inflamatórias através do hemofiltro. A hemodiálise estendida diária surgiu como uma alternativa para pacientes que estão em fase de recuperação ou não são muito catabólicos, e que não toleram o método clássico de hemodiálise. A diálise peritoneal pode ser utilizada em pacientes críticos, desde que não haja comprometimento hemodinâmico grave (situação na qual a má perfusão do peritôneo inviabiliza a diálise), nem contra-indicações formais (cirurgias abdominais, pacientes pneumopatas descompensados, insuficiência cardíaca descompensada). A diálise peritoneal é um bom método para crianças ou pacientes adultos estáveis, de pequeno porte (habitualmente com peso inferior a 60 kg) e pouco catabólicos.
Quando não há instabilidade hemodinâmica, damos preferência à forma convencional de hemodiálise, principalmente pela eficiência dialítica que apresenta em relação aos métodos contínuos. Alguns cuidados devem ser tomados. Habitualmente, o tratamento dialítico convencional na IRA deve-se iniciar com doses menores (fluxo de sangue baixo, primeira sessão mais curta e com administração de manitol) para evitar a “síndrome do desequilíbrio”. Se houver hipocalcemia e hipocalemia antes da primeira sessão, estas devem ser corrigidas, dado o risco de arritmias e parada cardíaca (com a correção relativamente rápida da acidose pela diálise, a concentração de cálcio e potássio no sangue pode cair ainda mais). A “dose” de hemodiálise deve ser individualizada, considerando os parâmetros volêmicos, o peso do paciente, a função cardíaca e a presença de hipercatabolismo e/ou desnutrição.
Para se diminuir a ativação inflamatória que ocorre pelo contato do sangue com o capilar da diálise, as membranas de cuprofane devem ser evitadas principalmente no paciente com sepse que já tem marcadores inflamatórios elevados na corrente sanguínea.
Em pacientes com IRA, o acesso preferencial para hemodiálise são os cateteres vasculares de curta permanência. Quanto ao local de inserção, devemos dar preferência à veia jugular interna, pelo melhor fluxo de sangue que proporciona e também pelo menor índice de trombose, quando comparada à veia subclávia. O acesso femoral é utilizado com freqüência em pacientes críticos com distúrbios de sangramento, pois é um local passível de compressão. Como esse sítio está associado a maior índice de recirculação, orientamos sempre a utilização de cateter mais longos (20 cm). Qualquer que seja o local de inserção deve-se estar muito atento à presença de sinais de infecção. Devem ser feitos curativos diários e também sempre que o curativo estiver molhado ou sujo. Trocar o sítio de inserção se houver sinais de infecção no local e lembrar que o cateter de diálise só deve ser utilizado para a diálise.
A IRA é uma síndrome caracterizada pela deterioração abrupta e persistente da função renal, que resulta na incapacidade dos rins em excretar escórias nitrogenadas e em manter a homeostase hidroeletrolítica.
A creatinina sérica é o exame mais utilizado para avaliação da função renal, mas se eleva acima dos limites normais apenas quando a FG encontra-se abaixo de 50% e é dependente de massa muscular, idade, sexo e raça.
Uma definição bastante usada para o diagnóstico de IRA é a elevação de 0,5 mg/dl da creatinina sérica para pacientes cujo valor basal seja inferior ou igual a 1,5 mg/dl, e elevação de 25% em seus valores para aqueles cuja creatinina sérica basal seja superior a 1,5 mg/dl.
A IRA pode ser classificada em pré-renal, renal ou pós-renal.
A IRA pré-renal ocorre como uma resposta fisiológica do rim à diminuição na perfusão sangüínea renal, seja por hipovolemia absoluta (por exemplo, sangramentos, diarréia) ou hipovolemia relativa (por exemplo, sepse, insuficiência cardíaca, hepatopatia).
A IRA renal pode ter origem isquêmica ou nefrotóxica. A principal causa de IRA renal é a NTA.
A IRA pós-renal é classificada como intra-renal (obstrução do fluxo do fluido tubular) ou extra-renal.
A IRA é habitualmente acompanhada por redução de diurese. A oligúria é definida como diurese inferior a 400 ml/24h e pode anteceder as alterações dos marcadores laboratoriais de FG.
Praticamente todos os órgãos e sistemas do organismo podem ser acometidos como conseqüência de uremia, hipervolemia ou distúrbios hidroeletrolíticos causados pela IRA.
Dentre os exames mais importantes no diagnóstico etiológico da IRA encontram-se a urinálise com análise de sedimento urinário, o cálculo das frações de excreção de sódio e uréia, os exames de imagem (em especial a ultra-sonografia) e a biópsia renal.
As principais preventivas gerais para se evitar a IRA são manutenção da volemia, otimização de débito cardíaco e não-utilização de drogas nefrotóxicas.
As indicações clássicas para o início de diálise são edema pulmonar não responsivo a tratamento conservador, hipercalemia não responsiva a tratamento conservador, acidose metabólica não responsiva a tratamento conservador e uremia sintomática (encefalopatia e pericardite).
Algoritmo 1: Avaliação diagnóstica da IRA
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